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Viver para além da deficiência

Quase todos os seres humanos experienciam a deficiência, temporária ou permanentemente, em algum momento da vida. Segundo a Organização Mundial da Saúde, uma em cada seis pessoas depara-se com uma incapacidade. No entanto, para quem tem de enfrentar o mundo com deficiência, o dia a dia ainda é um desafio. A falta de acessibilidades e de oportunidades são os principais obstáculos.

 

Há mais de 20 anos que a legislação portuguesa tem vindo a evoluir na promoção da acessibilidade como elemento fundamental na qualidade de vida das pessoas. Em vista está a eliminação de barreiras ambientais que impedem a participação cívica ativa integral das pessoas com mobilidade condicionada. O que haverá ainda por concretizar? Os testemunhos de quem lida, a cada instante de vida, com obstáculos parece demonstrar que ainda há um longo caminho a percorrer tanto da parte do Governo como da sociedade civil.

Raquel Banha, 26 anos e natural de Lisboa, nasceu com uma doença neuromuscular rara que a incapacita fisicamente em 94%. Desloca-se numa cadeira de rodas elétrica de 196 quilos e está dependente de um ventilador, com bateria finita, para respirar. Através do seu blogue Chairleader quebra tabus, dá a conhecer a realidade que vive e partilha reflexões pessoais. A bloguer ativista abre as portas para a discussão do que ainda há por fazer e conquistar no seio do mundo da deficiência. “É preciso educar, apostar na formação, tanto do público geral, como daqueles que influenciam pessoas, nomeadamente os média, em particular a comunicação social, os professores, os decisores políticos, etc.”, reitera.

 

Os constrangimentos que persistem

A imprevisibilidade é uma dor de cabeça para as pessoas com limitações físicas, não deixando margem para atos espontâneos. Uma mudança de planos ou uma situação inesperada torna toda a burocracia um impedimento, no quotidiano. Por exemplo, uma viagem de comboio pensada à última da hora exige um aviso prévio de seis horas à CP Planear detalhadamente toda uma rotina leva Raquel a crer que vive “com um delay gigante”.

A promoção da maior viabilidade de acessos insurge-se como crucial no bem-estar de todos os cidadãos. Desta forma, compete ao Estado garantir, como previsto no decreto-lei n.º 163/2006, a igualdade de acesso a todos os meios edificados sem qualquer constrangimento, independentemente das condições físicas de cada pessoa. Apesar da legislação, Portugal carece ainda de boas acessibilidades.

No debate “20 anos de acessibilidades em Portugal – problemas, oportunidades e desafios”, organizado pela Associação Salvador, o presidente e fundador, Salvador Mendes de Almeida, afirmou que eram esperados mais progressos do que aqueles que se verificaram até 2020. “Ainda não passamos disto: dos planos e das intenções. Seria muito importante ter um compromisso nacional, entre todas as forças políticas, sobre este tema transversal a todas as áreas da nossa sociedade”, ressalvou. De acordo com dados do Instituto de Cidades e Vilas com Mobilidade, nesse mesmo ano, mais de 80% dos municípios não tinha um único equipamento ou espaço público com acessibilidade total.

A Estratégia Nacional para a Inclusão das Pessoas com Deficiência, para o período de 2021- 2025, pretende reforçar o compromisso com a inclusão de pessoas com mobilidade reduzida, assumido como uma das prioridades do Governo. No que diz respeito à eliminação de barreiras comportamentais e à acessibilidade ao meio físico, tem como um dos seus objetivos gerais “promover a acessibilidade no sistema de transportes públicos e de passageiros como fator de mobilidade”. A incompatibilidade dos objetivos com os atos materializa-se com a aquisição de 117 novas automotoras elétricas pela CP – Comboios de Portugal, na qual a entidade é obrigada a recorrer a degraus para que os passageiros consigam acessar aos comboios.

Paulo Valle, 50 anos, tem limitações físicas derivadas de uma Distrofia Muscular de Duchenne. Na sua opinião, as questões relativas aos transportes são determinantes na independência. “É fundamental que sejam implementadas políticas e medidas para melhorar a acessibilidade nos transportes. Na questão dos táxis, seria de obrigar em lei a que 50% das praças locais tivessem veículos adaptados, financiados pelo Estado, mas exigindo que pratiquem os preços normais.”

 

A responsabilidade do Estado

Segundo consta dos últimos dados disponibilizados pela PorData, mais de 1,6 milhões de portugueses vivem abaixo do limiar da pobreza, com menos de 540 euros por mês. Dada a sua condição, Paulo Vale desloca-se numa cadeira de rodas elétrica e está dependente de um ventilador respiratório 24 horas por dia. Ativista na luta pelos direitos das pessoas com deficiência, procura “executar tarefas difíceis com a máxima precisão possível”. O administrador de sistemas informáticos vive com a mãe e conta com a ajuda dos irmãos, pois o valor da prestação social para a inclusão da qual usufrui, de cerca de 275 euros, não é suficiente para cobrir todas as despesas inerentes à sua condição.

Torna-se, no entanto, importante distinguir cuidador e assistente pessoal. A maior diferença reside na dinâmica de poder e de decisão. Ter assistência pessoal pressupõe que o destinatário de assistência tem capacidade de autodeterminação e controlo sobre a sua vida. “O assistente pessoal é contratado para oferecer assistência, sem necessariamente ter um vínculo pessoal pré-existente e é pago para executar sem elaborar julgamentos”, crê Paulo. De momento, esta assistência não tem qualquer custo para a pessoa com deficiência, sendo financiada pelo Estado mediante o projeto MAVI – Modelo de Apoio à Vida Independente para Pessoas com Deficiência ou Incapacidade.

Poder definir a hora a que nos levantamos, comemos e tomamos banho são elementos da rotina que à partida damos como garantidos, mas mão é uma realidade possível a todos. “Não poderá haver terceiros a decidir aquilo que podemos ou não podemos fazer, a considerar se devemos fazer as coisas de determinada maneira. Temos de ser nós próprios, enquanto pessoas, a ter direito à nossa autorrepresentação e a termos direito a exercê-la”, assegura Diogo Martins, presidente do Centro de Vida Independente (CVI).

O projeto-piloto Vida Independente é um passo na conquista da independência. “Queremos uma vida independente para todas as pessoas com deficiência”, declara. Os Centros de Apoio à Vida Independente (CAVI) visam estimular a participação e a autoconfiança, assim como promover a autodeterminação e a emancipação face aos profissionais e familiares.

 

Imagem Freepik
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O capacitismo e as falsas premissas

De acordo com o Observatório da Deficiência e Direitos Humanos, em 2020, foram registadas 1023 queixas por discriminação. Num texto publicado no blogue Chairleader, Raquel Banha aborda as alegadas mentiras que se propagam acerca da deficiência. A autora enumera diversas declarações das quais já foi alvo, como: “Se tu consegues e tens deficiência, eu consigo!” e “Tinhas tudo para não conseguires ir para a faculdade”. Atualmente a trabalhar no apoio ao cliente de uma multinacional, a especialista em marketing e comunicação refere que “este género de discurso torna evidente a inferiorização por parte da pessoa sem deficiência, afirmando ainda que uma pessoa com deficiência atingir um objetivo não faz dela heroína”.

No contexto do mundo laboral, há tendência a associar incapacidade física a menor desenvolvimento cognitivo. Diogo Martins, 34 anos, com limitações físicas derivadas de uma distrofia muscular de Ulrich, trabalha como consultor especializado em acessibilidade a transportes públicos e ambientes urbanos. Para além dos constrangimentos físicos com que lida diariamente, como ter os passeios e passagens bloqueados por automóveis mal estacionados e a sucessivas avarias de elevadores, bem como de outros equipamentos cuja reparação se verifica demorada por “razões ilógicas”, Diogo Martins considera ter usufruído de menos oportunidades por ser visto com alguma comiseração e alguém incapaz de desempenhar funções. “Não é real. É o preconceito das pessoas a sobrepor-se à realidade, impedindo-nos de dar, sequer, a conhecer o nosso potencial”, afirma. São inúmeras as oportunidades que diz terem surgido ao longo da sua vida e que foi obrigado a recusar por não ter alguém que o acompanhasse “para formações e oportunidades de emprego principalmente no estrangeiro”, declara.

 

Condições diferentes, oportunidades iguais

Há uma progressiva preocupação em proporcionar a todas as pessoas com limitações físicas as mesmas oportunidades, o que também passa pelo lazer. A Ria Formosa Boatours é uma empresa que abrange várias atividades e experiências, todas de fácil replicação pelas empresas concorrentes. No entanto, diferencia-se pelo seu serviço inclusivo, uma vez que possui condições de acessibilidade para pessoas com mobilidade reduzida, desde a preparação primária do barco, até a um sistema de grua que permite a estes clientes desfrutar de um banho na ria na companhia de amigos e familiares.

O projeto também contempla a preparação de áudio-guias para que os passeios possam ser acompanhados por pessoas cegas. Este tipo de iniciativas requer investimento privado e público e, não sendo um mercado de massas, acaba por ser um nicho onde até este momento pouco se aposta. “Os diferentes agentes económicos, incluindo o Estado, teriam que entender estes ‘clientes’ como uma verdadeira aposta, e essa perspetiva, na nossa opinião, ainda está por concretizar”, assegura Paulo Gonçalves, proprietário da empresa.

Segundo o Instituto Nacional para a Reabilitação (INR), no verão de 2021, Portugal reunia um total de 223 praias reconhecidas como acessíveis e seguras para pessoas com incapacidade ou limitação na mobilidade. Cerca de 82% destas praias disponibilizam equipamentos para o banho e passeios de pessoas com mobilidade condicionada.

“A igualdade de acesso ao mar é um direito humano inalienável”, afirmou à Imprensa o ministro grego do Turismo, Vassilis Kikilias. Atualmente, este país do sudeste da Europa é um dos mais inclusivos e acessíveis. Através do sistema Seatrac, de design grego, implementa alterações aos parques de estacionamento, balneários, casas de banho, passadeiras, bares de apoio e da instalação de decks sombreados no areal, com o objetivo de tornar centenas de praias totalmente acessíveis a pessoas com incapacidade. A grande revolução consiste na oferta de total autonomia ao utilizador, que, através de um comando, coordena uma cadeira movida a energia solar que desce uma rampa do areal até ao oceano.

As recentes mudanças que se têm vindo a concretizar nas grandes salas de espetáculos pretendem a inclusão de público com deficiência. “Temos como premissa tornar a Altice Arena mais acessível para todos”, destaca o CEO da sala de espetáculos. Jorge Vinha da Silva assegura que “no início de maio, foram realizadas melhorias a nível das infraestruturas do edifício, de forma a facilitar o acesso à entrada de pessoas com mobilidade reduzida. O concerto da banda portuguesa D’ZRT apresentou, pela primeira vez, uma plataforma na plateia para pessoas com mobilidade condicionada, dando-lhes a hipótese de assistir a um concerto nesse setor. O bar sofreu, de igual modo, modificações no sentido deambulatório, ao se adaptar à presença de cadeiras de rodas”.

A integração de coletes sensoriais para pessoas surdas, que as deixa sentir a vibração da música e a audiodescrição para pessoas com deficiência visual, intelectual, dislexia e idosos constituem já duas conquistas no crescimento da inclusão.

 

Pequenos grandes passos

Combater os estereótipos e a tendência de menorização das requer um esforço contínuo e coletivo. A educação e a conscientização nas escolas e na sociedade em geral permitem elucidar acerca das capacidades, talentos e contribuições de pessoas com deficiência. Paulo Valle considera que “quanto mais as PcD estiverem presentes e participarem ativamente, mais será desafiada a visão estereotipada dos “coitados e menos válidos”.

A falta de acessibilidades é um dos principais fatores de exclusão social das pessoas com deficiência motora. “Infelizmente, há uma enorme inércia neste processo, o que faz com que a adaptação dos espaços seja lenta e, muitas vezes, de fraca qualidade”, afirma Diogo acerca das infraestruturas em Portugal. Na primeira celebração do Dia das Acessibilidades, a 20 de outubro, Carlos Moedas deixou a promessa da conceção de um bairro modelo que represente o exemplo de acessibilidade para todos e para as melhorias que são urgentes efetuar na cidade de Lisboa.

A propósito do 15.º aniversário desde a adoção da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, pela ONU, o Mecanismo Nacional de Monitorização da Implementação da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência conclui que “uma sociedade que não inclui em si mesma todas as pessoas, independentemente das diferenças, e que, por isso mesmo, exclui e fragiliza alguns dos seus elementos em função de características diferenciadoras, é uma sociedade que não respeita o mais elementar dos direitos humanos – o direito de todos a uma cidadania plena. É, por isso mesmo, uma sociedade mais pobre.”

As diversas concretizações que se verificam até então só foram possíveis graças ao motor de mudança que é a lei. No entender de Raquel Banha, “é uma ferramenta inteligente que criamos para colmatar a nossa própria incapacidade de mudar mentalidades de um dia para o outro”.

 

Por Constança Santos e Mariana Nobre, alunas da licenciatura em Jornalismo da Escola Superior de Comunicação Social de Lisboa.

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