Um corte nos direitos da mulher
A OMS estima que mais de 200 milhões de meninas e mulheres tenham sido submetidas ao corte até aos dias de hoje. Em Portugal, onde a prática é proibida, os números não deixam ninguém indiferente: só em 2022 foram detetados 190 casos. Nos últimos anos, associações e organizações empreenderam uma luta conjunta de combate ao ritual traumático, mas que se perpetua de geração em geração
O calor sente-se no ar e, por vezes, as casas de palha abanam com a leve brisa. O sol realça a cor vibrante das vestes coloridas e o som dos tambores faz dançar a terra solta. De dia ou de noite, o ambiente é de comemoração. À noite, o silêncio da escuridão contrasta com os gritos. Para uns, é dia de festa, mas para a jovem que vai ser mutilada é um dia de sacrifício. É este o início da vida de muitas mulheres que agora serve de inspiração Uleimatu (nome fictício) para construir aquela que é também a sua própria história e que conta no texto “Grito de Esperança”. Apesar de ser uma sobrevivente da mutilação genital feminina, confessa que, talvez por proteção do próprio cérebro, não tem memória do momento: “Era demasiado nova para hoje me puder lembrar.” Anos mais tarde, Uleimatu já não estava no centro do sacrifício, mas testemunhou a mesma atrocidade quando viu as irmãs serem submetidas ao ritual.
Consciente da crueldade do ato, a jovem guineense acredita na mudança e, por isso, tornou-se uma voz ativa, ao lado de tantas outras, no combate à prática. “Não podemos lutar sem conhecer mesmo a realidade. Muita gente pode falar sobre um assunto, mas falar na primeira pessoa é sempre mais impactante”, considera.
Encontrar a própria voz
25 de Maio. Dia Mundial de África. UMAR. Um ambiente multicultural, em que as paredes repletas de livros escrevem a história do feminismo e os cartazes enaltecem os valores da associação. Sediada em Alcântara, mas espalhada um pouco por todo o país, a União de Mulheres Alternativas e Resposta é uma organização não-governamental, que combate a violência contra as mulheres e promove a igualdade social. A união faz-se sentir no amplo espaço, aberto, sem paredes nem barreiras físicas, no qual se respira partilha e liberdade.
Janica Ndela, há quatro anos na UMAR, integrou inicialmente a associação como estagiária. Hoje, é técnica profissional e ajuda diversas mulheres a encontrarem a sua própria voz: “Não vou falar por outras mulheres. Vou ajudá-las a falarem por si.” É este o mote que guia a luta de centenas de feministas da organização.
Com quase 50 anos de história, a UMAR já conta uma série de projetos, que abordam a questão dos direitos humanos, principalmente, os das mulheres. Contudo, só em 2015 a equipa se começou a debruçar sobre a questão da Mutilação Genital Feminina. “Sendo esta uma das formas de violência contra as mulheres, achámos que deveríamos também intervir nessa vertente. A partir daí, a UMAR começou a debater esta temática”, acrescenta Janica.
O primeiro grande passo para o combate contra a mutilação genital feminina foi dado em 2015, com o projeto IÁ-IÁ – Informar – Agir – Investir – Alterar, que surgiu no seguimento de uma linha de continuidade de outras ações. Segundo a técnica da UMAR, “na altura, foi este o projeto que gerou mais impacto”.
Janica Ndela destaca que “atualmente, a UMAR desenvolve um vasto trabalho, no sentido de integrar as pessoas da comunidade na luta contra a prática”. Nasceu, assim, o projeto Jovens Ativistas pelo fim da Mutilação Genital Feminina, que integra seis técnicas. Quatro das quais partilham a mesma realidade: duas são sobreviventes da prática, outras duas não. A elas, juntam-se também uma enfermeira e outra ativista. Financiada pela CIG (Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género), a ação de sensibilização visa alertar e consciencializar todas as pessoas um pouco por todo o país, nomeadamente nas áreas que a UMAR ainda não abrange. A ideia é chegar a todas mulheres “independentemente do território, faixa etária ou cor de pele”, como se lê no desdobrável relativo a esta campanha.
O conhecimento contra a barbárie
Na entrada do edifício da CIG, lê-se em letras garrafais, entre outras frases relativas à igualdade: “A mutilação genital feminina não é tradição, é crime. Não corte o futuro.” A sala de reuniões é revestida por diversos cartazes de encontros feministas e não só. Em conversa com Ana Paias das Neves, funcionária da CIG, é revelado que a organização governamental “tem um papel de financiamento a pequenas instituições, mas também trabalha na implementação de todas as outras medidas. Não tem só um papel de mediação, mas também é bastante ativo no que diz respeito aos projetos.” Neste sentido, a CIG leva a cabo campanhas de sensibilização e de formação a profissionais que, de alguma forma, têm contacto com a mutilação genital feminina.
É na altura das férias que há maior risco. Como explica Ana Paias das Neves, “as famílias visitam os países de origem e é nestes momentos que as campanhas são mais precisas. As meninas, por vontade das próprias mães ou de terceiros, como as avós, são levadas com o objetivo de realizarem esta prática, tornando-se, assim, parte da comunidade”. Nos aeroportos, até aos últimos momentos antes da partida, a CIG procura consciencializar para a problemática. Um dos futuros desejos da organização passa por estas campanhas se repetirem também no «lado de lá». “Estamos a trabalhar no sentido de criar protocolos de cooperação entre vários países para que a sensibilização aconteça não apenas deste lado, mas também para que as pessoas possam ser sensibilizadas e acompanhadas quando chegam”, sublinha a funcionária da CIG.
As escolas são lugares de aprendizagem e conhecimento. Nesse sentido, torna-se muito importante despertar consciências para o problema, desde muito cedo. Ana Paias das Neves realça a importância do guia destinado aos profissionais da comunidade escolar. “Apesar de a temática já ser, por vezes, abordada nas aulas de Cidadania, uma das propostas da organização é tornar este tema também parte dos conteúdos programáticos das escolas e até das universidades.” Para Elsa Mota, psicóloga clínica que integra a Divisão de Saúde Sexual, Reprodutiva, Infantil e Juvenil da Direção-Geral de Saúde, “é importante trabalhar em articulação com as escolas, até porque muitas destas crianças que são já sobreviventes ou que podem vir a ser submetidas à prática estão nas salas de aula”.
A atuação da CIG passa igualmente pela formação de profissionais, nomeadamente de saúde, através de projetos, como é exemplo “Práticas Saudáveis: Fim à Mutilação Genital Feminina”. Segundo a CIG, esta ação foca-se nos Centros de Saúde com a finalidade de atuar em situações de risco e “implementar planos de ação locais e protocolos de atuação entre as diversas organizações locais, públicas e da sociedade civil.”
O plano integra também uma pós-graduação destinada a profissionais de saúde que, após a formação, estão aptos para realizar atividades com as comunidades nos municípios e nas escolas. A pós-graduação começou em 2012/2013 e o enfermeiro especialista em saúde materna e obstétrica Fernando Prada foi um dos primeiros alunos. O enfermeiro formou-se em Saúde da Mulher sobre Mutilação Genital Feminina, na Escola Superior de Enfermagem de Lisboa (ESEL). Este curso foi fruto de um protocolo entre a própria escola de ensino superior, a Direção-Geral da Saúde, a Associação para o Planeamento da Família e a CIG. Fernando Prada confessa que ingressou neste curso “acidentalmente”, mas que abraçou imediatamente esta causa. O profissional de saúde admite ainda que esta especialização lhe deu “todas as ferramentas.”
A abordagem de confiança
Fernando Prada, enfermeiro na Maternidade Alfredo da Costa (MAC), conta que “apesar de existir uma preocupação com as mulheres que já foram submetidas à prática, o trabalho dos profissionais de saúde passa, essencialmente, por evitar que haja uma replicação”. De acordo com a orientação da DGS de 2021, sempre que uma mulher é identificada nos serviços de saúde, inicia-se uma cadeia de referenciação e sinalização, na qual estão envolvidos vários profissionais, desde a Equipa de Prevenção da Violência em Adultos ao Núcleo de Apoio a Crianças e Jovens em Risco. Este último atua quando há o perigo de perpetuação da prática numa menor. No entanto, a primeira abordagem, se for o caso, é logo realizada após o parto – altura em que muitos casos são identificados – ainda nos serviços de saúde. “Se for um parto em que nasça uma menina, sempre com consentimento, fazemos uma primeira abordagem sobre o tema e explicamos o enquadramento legal”, explica o enfermeiro da MAC.
Por ser uma questão envolta num “grande secretismo”, para Fernando Prada, a empatia, o cuidado e a prudência são aspetos a ter em conta na abordagem às sobreviventes. Só assim é possível ter uma “conversa terapêutica”, conta o enfermeiro, que nunca sentiu que o facto de ser homem constituísse um entrave. Contudo, garantir este à-vontade nestas conversas, por vezes, não é fácil. “Foi muito difícil para mim ouvir um profissional a confirmar a situação”, confidencia Uleimatu, sobrevivente do “Fanado”, nome dado ao ritual de iniciação nas comunidades israelitas guineenses.
As mulheres podem não se sentir confortáveis em expor-se perante outras pessoas. “Uma sobrevivente para falar com alguém primeiro tem de sentir confiança, e nós fazemos essa ponte”, refere Janica Ndela.
Ainda não é suficiente…
A experiência de Uleimatu permite-lhe afirmar que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) não está preparado para responder às necessidades das sobreviventes. Esta opinião parece ser partilhada pelos profissionais de saúde que trabalham com a mutilação genital feminina. “Julgo que ainda é necessário trabalhar no sentido de as mulheres saberem que podem recorrer ao SNS”, defende Elsa Mota, psicóloga clínica, que integra a Divisão de Saúde Sexual, Reprodutiva, Infantil e Juvenil da Direção-Geral de Saúde. A formação dos profissionais torna-se, assim, a melhor arma no combate à mutilação genital feminina.
A relação entre os meios de comunicação e esta temática é ainda frágil, apesar de já terem sido desenvolvidos alguns trabalhos na área. Para Janica Ndela, “os média devem ter um papel de combate e de prevenção. Devem passar a notícia de forma a consciencializar as pessoas e a criar um impacto positivo”.
Sofia Branco, jornalista da agência de Notícia Lusa, é autora de diversos artigos e de um livro sobre esta temática. Embora considere complicado tratar estas questões por serem muito sensíveis e desgastantes, afirma que “já têm muita cobertura e atenção mediática.” E acrescenta: “Nós jornalistas podemos fazer sempre mais e nunca é suficiente.” Para contrastar, Uleimatu afirma que “comunicação social só aborda os temas quando dão likes e visualizações.”
A tradição como justificação
O maior entrave ao combate parece mesmo ser o fundamento cultural e social para a prática. Por detrás desta realidade encontra-se um problema, uma questão mais profunda: as desigualdades de género, perpetuadas entre gerações. “O fanado tem esse efeito perverso e mau que é, de facto, uma violência de género, um controlo da mulher do ponto de vista da sexualidade por parte do homem”, defende Fernando Prada.
A tradição nem sempre é um legado de orgulho. “Vou continuar a lutar para extrair tudo o que é mau dentro da minha cultura e continuar a preservar o que é bom. Nunca vou apoiar nenhum tipo de violência”, sublinha Janica Ndela. Para além de uma violência física, o fanado é também uma agressão moral, despertando, por vezes, um sentimento de desconfiança e traição nas jovens. “Muitas vezes, as meninas são levadas para este ritual a pensarem que é uma passagem ou uma festa. São levadas e enganadas por pessoas em quem confiam”, afirma Elsa Mota.
“As mulheres são mutiladas para agradar o homem. O conhecimento que a pessoa adquire durante a cerimónia do fanado acaba ali. Não se conta nada a ninguém. Não se partilha nada. Se é um conhecimento, transmite-se. Agora, uma sobrevivente adquirir um conhecimento para se calar? É para servir quem? O homem, dentro quatro paredes”, conclui Janica Ndela.
Por Beatriz Santos, Hugo Oliveira e Sofia Santos, alunos da licenciatura em Jornalismo da Escola Superior de Comunicação Social de Lisboa.
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