Você deve reconhecer esta cena de algum lugar: a mãe está concentrada na novela das nove. O vilão está tramando mais uma armadilha para separar o casal principal. O menino no pé da mãe começa a chorar: “Calma, Ruanzito, pera aí”, a mãe reclama sem dar atenção à criança. “BUAAAAA”, um berro ecoa pela casa e a mãe é obrigada a intervir: dá a chupeta pra ele: “BUAAAAA”; tenta o brinquedinho: “BUAAAAA”. Faz palhaçada pra entreter: “BUAAAAA”. Entrega o celular com o Youtube aberto na Galinha Pintadinha: o pranto vira só um beicinho choroso e logo desaparece. A mãe, então, retorna ao sofá e pode finalmente terminar sua novela em paz. Até que ponto essa exposição à tecnologia e internet é saudável?
Há 10 anos, dificilmente você veria uma cena como essa. Hoje, quase que por via de regra, crianças que tenham pelo menos 2 anos já tiveram contato com a internet e dispositivos eletrônicos. É o que aponta o estudo americano Zero to Eight: Children’s Media Use in America de 2013. Segundo o levantamento, a porcentagem de crianças com menos de dois anos que utilizava algum tipo de eletrônico portátil era de 38%. Em 2010 era de apenas 10%. Em análise mais recente, a pesquisa constatou que entre 2013 e 2017, o tempo de uso de eletrônicos por crianças de até 8 anos, triplicou. Passou de 15 para 48 minutos diários.
A realidade brasileira
No Brasil, a pesquisa TIC KIDS ONLINE realizada em 2017 , demonstra que 18% das crianças brasileiras teve seu primeiro acesso à Internet até os 7 anos de idade. E do total de crianças e adolescentes que a utilizam, 71% o fazem mais de uma vez por dia. Esses dados são uma verdadeira fotografia da sociedade brasileira. O levantamento de 2017 do IBGE, mostrou que 74,9% dos domicílios no Brasil utilizavam Internet. Além disso, houve significativo avanço nas áreas rurais, onde a taxa de ampliação de acesso à Rede, cresceu mais que nas áreas urbanas. Tudo isso aponta para a democratização do acesso à tecnologia.
Essa nova realidade da vida moderna, apesar de positiva em muitos aspectos, tem gerado alguns transtornos. O que leva a um polêmico debate sobre a tecnologia: ela é aliada ou inimiga? Boa ou má?. Talvez nem um, nem outro, e tudo o que é necessário seja dosá-la, principalmente quando se fala de crianças em fase de desenvolvimento.
Tecnologia e saúde infantil
Estudos apontam que a exposição excessiva de crianças à tecnologia pode trazer riscos a sua saúde mental, social e até física. Não raramente crianças são diagnosticadas com sintomas de ansiedade e agressividade em momentos de abstinência do contato com o aparelho.
A concentração e a memória também podem ficar muito comprometidas. Isso acontece porque a velocidade de informações recebidas é muito grande e o cérebro passa a criar atalhos até o córtex frontal, região do cérebro relacionado principalmente à memória de trabalho e à atenção. Deste modo, se a criança tem dificuldade em se concentrar, terá também dificuldade em aprender, pois as informações recebidas em sua memória de trabalho não serão absorvidas e convertidas em memórias de longo prazo. Outro problema é que a criança precisa sentir o mundo por meio dos seus órgãos sensoriais para desenvolver sua capacidade sensório-motora. Isso requer deslocamento, tato, diferentes estímulos auditivos e visuais. Coisas que apenas a imagem na tela do celular ou do tablet não são capazes de proporcionar para seu completo desenvolvimento.
Outro agravante é que os problemas relacionados ao uso abusivo de dispositivos eletrônicos por crianças não se limita aos distúrbios de ordem fisiológicas. Envolve também a exposição a conteúdos violentos e de autoagressão, além de tornar a criança vulnerável à redes de pedofilia e exploração sexual online e pornografia.
Como lidar com tudo isso?
Tentar impedir que a criança tenha contato com a internet e aparelhos tecnológicos é uma missão quase impossível e na verdade, pouco eficaz. Cabe portanto uma “educação digital” e o equilíbrio, baseado na recomendação de especialistas. A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) e a academia Americana de Pediatria (AAP) não recomendam que celulares sejam usados como “brinquedos” ou “distração” para crianças menores de 3 anos, porque esta é uma faixa etária crucial do desenvolvimento infantil.
Em se tratando de crianças mais velhas, é necessário que a família faça o controle da rotina da criança, de modo que o tempo de tela seja proporcional à sua idade. Em 2016 a SBP lançou uma manual sobre a “Saúde de Crianças e Adolescentes na Era Digital”, contendo orientação para pais, educadores e pediatras. No fim, vale o bom e velho ditado dos nossos avós: “Tudo o que é demais, faz mal”. Fazendo o uso adequado e com supervisão, a tecnologia pode ser uma grande aliada no processo de aprendizagem e descoberta da criança.