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‘Sentir-se em casa’ para além das fronteiras

Graças ao programa Erasmus, os caminhos de vários alunos estrangeiros cruzam-se em Portugal desde dos anos 1990. À distância de um oceano, alunos estrangeiros da Universidade da Madeira e da Escola Superior de Comunicação Social revelam como são recebidos neste outro mundo que pretendem conhecer. No regresso a casa, levam uma bagagem repleta de memórias, experiências e cultura

 

São oito da manhã e os alunos preparam-se para a primeira aula do dia. Oinamo Shergozieva, estudante do Tajiquistão a frequentar a universidade de Roma La Sapienza, em Itália, aproxima-se e diz “Bom dia!”. Agora estuda na Universidade da Madeira (UMa) e pretende conhecer novos métodos de ensino, fazer amigos e explorar uma nova cultura.

No mesmo dia, mas desta vez em Lisboa, na Escola Superior de Comunicação Social (ESCS), este olá é substituído por um “Hello, everyone!”. Ida Malec cumprimenta os colegas de Erasmus, ao entrar na sala 2P5. À procura de um novo desafio, esta estudante polaca chega a Lisboa, cidade pela qual se tem vindo a apaixonar aos poucos.

Mesmo sem saber o que os esperava, o desejo de desenvolver as capacidades de comunicação e a necessidade de ganhar independência falaram mais alto. Da vizinha Espanha à Polónia, passando pela República Checa e pelo Tajiquistão, os estudantes aderem ao programa Erasmus e demonstram vontade de ver para além da “bolha” que os rodeia.

Com 36 anos, o programa Erasmus tem adquirido mais visibilidade, sobretudo desde a assinatura do Processo de Bolonha. Pouco depois, em 2015, por exemplo, Portugal recebeu 2179 alunos em mobilidade e, em 2020, este número aumentou para os 12 555 alunos, de acordo com o The Erasmus+ Annual Report 2020 da Comissão Europeia.

Quer seja na UMa ou na ESCS, no Funchal ou em Lisboa, os alunos estabelecem relações em cidades onde nunca tinham vivido, com um receio em comum: a barreira linguística. Cada instituição, por sua vez, tenta atenuar este obstáculo e integrar os alunos da melhor forma, apresentando, no entanto, estratégias diferentes.

 

Imagem Freepik

 

O “abrir portas” da Madeira aos estudantes Erasmus

O Processo de Bolonha, assinado em 1999, só abrangeu os planos curriculares das instituições portuguesas a partir de 2006. Foi durante o período de adequação pré-estabelecido que, no ano letivo de 2007/2008, a Universidade da Madeira aderiu a este processo. Há 15 anos, portanto, ver alunos estrangeiros nas salas ou nos corredores desta instituição era ainda uma miragem. Como conta Elsa Fernandes, vice-reitora da UMa e responsável pelo programa Erasmus: “Na altura em que adequamos o sistema a Bolonha, não recebíamos muitos alunos estrangeiros. Só quando houve uma certa uniformização dos sistemas é que a mobilidade foi facilitada.” Hoje, são muitos os estudantes Erasmus, mas, como diz, “a adesão dos madeirenses a estes projetos no decorrer dos últimos anos também tem vindo a aumentar”.

Sónia Martins, professora de Matemática e investigadora na UMa, dá ênfase ao processo de Bolonha, o qual “veio agilizar o ‘abrir portas’ da universidade”. A docente lembra que “para muitos alunos que vivem num contexto insular a mobilidade incoming é a única oportunidade para contactar, em primeira mão, com diferentes realidades”.

 

A proximidade com os professores e alunos

Uma região ultraperiférica como a Madeira, com cerca de 250 mil habitantes, apresenta algumas limitações no que diz respeito ao ensino superior, que se refletem, por exemplo, na constituição das turmas, que são mais pequenas do que as das grandes universidades do país. O número de alunos estrangeiros que esta instituição recebe anualmente “não justifica a formação de turmas específicas para Erasmus”. Sónia Martins reflete ainda sobre o contexto insular e o que significa viver e ensinar numa ilha. “Apesar de ainda ser difícil captar alunos estrangeiros, visto que somos uma universidade pequena com um número de cursos limitado, notamos o aumento de interesse por parte dos alunos para frequentar a mobilidade”, refere.

Integrados em turmas locais, os estudantes estrangeiros assistem às aulas em português. Markéta Navrátilová, aluna de Economia, tal como Oinamo Shergozieva, faz parte dos 113 jovens que este ano letivo escolheram a Madeira como destino de Erasmus. Apesar de não existirem aulas exclusivas em inglês, a estudante da República Checa da Univerzita Parabudice garante que os docentes facilitam o processo de integração e aprendizagem: “Os professores estão sempre disponíveis para encaminhar os alunos. Dão-nos conselhos e a bibliografia em inglês necessária para cada aula”. Oinamo Shergozieva, por sua vez, reconhece a proximidade e a simpatia da maior parte dos docentes, que “no final de cada aula, reservam uns minutos para explicar melhor os conteúdos lecionados”.

Os estudantes que chegam à Universidade da Madeira afirmam não se sentirem outsiders. Ondřej Paleček, aluno da licenciatura em Economia, também oriundo da República Checa, garante que a ilha é um bom sítio para fazer amigos: “Muitos estudantes são extrovertidos e querem falar connosco. Quando penso, provavelmente, tenho mais amigos de Portugal do que amigos de Erasmus.”

 

Português, inglês e “portunhol” 

As aulas em português e o curso de língua portuguesa gratuito não influenciam a adaptação do modelo de avaliação. A professora e investigadora em inovação pedagógica, Sónia Martins, fala sobre a versatilidade que as suas aulas requerem para que todos se entendam da forma mais eficiente. “Nada invalida que eu faça as frequências em inglês ou que apoie os alunos de Erasmus. Tento garantir as condições necessárias para que estes estudantes possam concluir os seus estudos connosco, não menosprezando, no entanto, os alunos que frequentam o curso em português”, constata.

A docente defende que “um dos maiores ganhos do Erasmus é conhecer e entender a realidade do outro”. Para tal, reforça a necessidade de encontrar “um meio termo”: “É importante facultar o programa Erasmus aos nossos, mas também é relevante garantir que aqueles que nos visitam tenham essas oportunidades, através de um ensino de qualidade.” Tudo exige muita preparação. No meio do caos e dos mais variados idiomas, a flexibilidade é fundamental para que as ideias surjam por meio de uma “interação engraçada”, em que se mistura o português, inglês e “portunhol”.

 

É através deste contacto em primeira mão com a comunidade local que as relações acabam por se estabelecer. “Se existissem aulas exclusivamente em inglês só para nós, muito do contacto com os portugueses seria limitado”, partilha Michaela Navrátilová, aluna da República Checa. “Desta forma, podemos conhecer melhor os alunos locais, aprendendo através deles a história e a cultura portuguesa. Eles sugerem sítios para visitarmos, comermos, e muito mais”, reconhece Oinamo.

Realizar a mobilidade Erasmus, de facto, não é uma experiência enriquecedora apenas para aqueles que deixam o seu país na procura de algo novo. A docente da Madeira garante que os professores ficam a ganhar com a possibilidade de interagir com estudantes de universidades internacionais: “É como percorrer vários cantos do mundo, sem sair da sala de aula. Especialmente quando as turmas são pequenas, fico a conhecer a realidade destes estudantes. Em termos pessoais, é muito gratificante porque acabamos por estabelecer boas amizades.”

 

Erasmus na ESCS

Reza a lenda que, do outro lado do Atlântico, a 966 km da Madeira, existe uma escola em formato de barco no topo duma colina. Arca de Noé ou não, é na Escola Superior de Comunicação Social que as ruas de Benfica e o além-mar se cruzam.  “A ESCS é a instituição do Instituto Politécnico de Lisboa que recebe mais alunos Erasmus, exatamente por causa das unidades curriculares (UC) em inglês”, explica Sandra Miranda, vice-presidente da ESCS. No ano letivo de 2022/23, a instituição recebeu 83 alunos estrangeiros em mobilidade incoming, um número crescente desde a pandemia da Covid-19.

 

Há uma maior procura pelas disciplinas na língua universal, apesar de a universidade assegurar a oferta de disciplinas em português e em inglês. Ida Malec, Natália Plaza e Silvia Guerrero chegaram à ESCS no início deste ano letivo. Não obstante a preferência pelo regime de ensino em inglês, as estudantes reconhecem que este é um entrave às conexões interculturais, sobretudo com os portugueses. “Às vezes, sinto que não tenho a oportunidade de interagir com os estudantes locais e de conhecê-los porque tenho aulas em inglês”, partilha Natália. Porém, a procura pela semelhança também é um fator a considerar: “É muito mais fácil interagir e estabelecer amizades com pessoas do meu próprio país que partilhem experiências parecidas às minhas”, reflete Ida.

Natália e Silvia, estudantes da vizinha Espanha, vieram para Lisboa na esperança de ver e respirar novas culturas e experiências, assim como também desfrutar a independência, a festa, o desafio e a aventura daquilo que é viver sozinho, numa cidade completamente diferente.

 

Conhecer Portugal através da História

Tanto os alunos como alguns professores da ESCS têm a necessidade de se adaptar à dinâmica dos Erasmus e, portanto, às aulas em inglês. Este é um aspeto que a direção da escola tem em consideração. “Todas as questões são acauteladas e, obviamente que são feitas garantias de que o corpo docente e não docente está minimamente preparado”, clarifica Sandra Miranda.

Rita Almeida de Carvalho é professora e investigadora no Instituto de Ciências Sociais de Lisboa, trabalha na ESCS há mais de três anos. Apesar de lecionar em inglês, a docente considera que o problema da barreira linguística se mantém mesmo assim: “Uma coisa interessante que verifico é o facto de muitos alunos de Erasmus não falarem bem inglês. Portanto, têm alguma dificuldade em acompanhar as aulas.”

O sucesso destes alunos, no entanto, é também assegurado pelo ambiente descontraído proporcionado dentro da sala de aula. “Costumo sugerir aquilo que devem ver e fazer em Portugal. Tento não os sobrecarregar muito. E essa é a minha forma de os acolher”, constata.

É professora de História Contemporânea, mas tem experiência como investigadora “nas grandes cidades do mundo”. Também no contexto internacional, existem obstáculos que se sobrepõem ao intercâmbio: “Tinha de levar as aulas todas escritas em papel porque nunca tinha trabalhado assim. Ao princípio é difícil, mas depois a pessoa habitua-se: é como tudo na vida.”

Já na ESCS, a docente garante que o contacto que se estabelece entre alunos e professores é mutuamente enriquecedor. “Para mim, é muito interessante ver a diversidade que existe numa sala de aula. É uma experiência que não só é boa para os estudantes, como também para os professores porque faz-nos ganhar mais mundo”, partilha.

 

(Imagem Freepik)

 

 Os obstáculos à integração dos alunos

A integração dos alunos de Erasmus na ESCS é uma das grandes preocupações da direção. Rita de Carvalho, por sua vez, enfatiza o papel da comunidade estudantil, garantindo que o primeiro passo deve partir dos alunos. “Nós portugueses somos muito fechados e tendemos a fazer grupos. Lá fora não é assim”, desabafa.

A tendência que os alunos têm para frequentar as unidades curriculares em inglês é vista, porém, como um dos principais entraves à sua integração. “Essa é uma grande preocupação da nossa parte. Eles acabam por ter a experiência Erasmus, mas não têm a experiência da escola”, refere Sandra Miranda. Com um enorme leque de disciplinas em inglês, a aprendizagem dos conhecimentos básicos da língua portuguesa é colocada em segundo plano. As aulas de língua portuguesa são encaradas apenas como um complemento. No entanto, a direção da ESCS garante que há uma “adesão de quase 100% a estes cursos, nos quais também se aprende a história e a cultura portuguesas”.

 

O papel dos estudantes 

A resposta apresentada pela ESCS passa pelo esforço coletivo da comunidade. Através do programa Mentoria, criado há dois anos, pretende-se a melhor inserção dos alunos de Erasmus no contexto académico. Uma semana antes das aulas começarem, os estudantes estrangeiros são recebidos no “welcome day”. A Associação de Estudantes (AE) intervém bastante, nomeadamente na receção, em que todos os núcleos da escola estão representados, desde a ESCSFM ao E2. Os mentores, por sua vez, são alunos de 2º. ou de 3º. ano que estão devidamente preparados para tal tarefa. “Esse mentor teve uma formação e, portanto, apresenta uma série de competências que lhe permitem orientar os alunos Erasmus que lhe são atribuídos”, clarifica Sandra Miranda.

Inês Mendes e Raquel Costa, representantes do departamento cultural da AE, não deixam de referir todo o trabalho que desenvolvem no âmbito desta integração. “Organizamos a iniciativa Welcome Erasmus, que consiste numa palestra e numa sessão de boas-vindas. Temos um grupo de Whatsapp para mantermos o contacto com os alunos de Erasmus, onde transmitimos os projetos e eventos da escola”, explicam. No entanto, referem que “o interesse dos alunos estrangeiros em aderirem a estas iniciativas é escasso”.

A partir Lisboa ou do Funchal, no final de mais um ano letivo, os estudantes preparam agora o regresso a casa com a sensação transversal de missão cumprida. Apesar das dificuldades, os alunos encaram o Erasmus como uma experiência marcante nas suas vidas, que permite crescer, saborear a liberdade e criar raízes. “Tive a oportunidade de viver e experimentar muitas coisas e agora custa-me acreditar que uma ‘casa’ possa ser um lugar fixo. Tudo é feito de pessoas”, reflete Ida Malec.

 

Por Cristina Gordon e David Santos, alunos da licenciatura em Jornalismo da Escola Superior de Comunicação Social de Lisboa.

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