Em 2019, o físico brasileiro Marcelo Gleiser se tornou o primeiro latino-americano a ganhar o Templeton, nos Estados Unidos. O prêmio Templeton — apelidado de Nobel da Espiritualidade — é um prêmio que valoriza o diálogo entre ciência e espiritualidade, de forma a estimular a compreensão desta última. Existente desde 1972, o prêmio já foi entregue a personalidades da ciência e também da religião, como Dalai Lama e Madre Teresa de Calcutá.
Autor de oito livros, o cientista é conhecido no Brasil por seus textos em jornais nacionais e por ter participado de programas de televisão — como o Fantástico, da Rede Globo — no intuito de popularizar e estimular o estudo da astrofísica e origens da vida na Terra. É um intenso estimulador da Ciência no país e um dos cientistas brasileiros mais conhecidos no exterior. Gleiser ganhará — além do título — cerca de 5 milhões de reais como prêmio. O hoje professor de física e astronomia do Dartmouth College, nos Estados Unidos, falou ao Globo sobre os cortes na área da Educação realizados pelo governo Bolsonaro e sobre espiritualidade e ciência. Veja abaixo as questões:
A ciência no Brasil vem sofrendo com seguidos cortes de recursos — para pesquisa e educação, por exemplo. Qual o impacto disso?
É trágico. Acho lamentável que o governo não veja o impacto dessas decisões, que representam a destruição efetiva da competitividade cientifica e tecnológica brasileira. Toda uma geração está sendo comprometida. Pensem na Coreia, que no início dos anos 50 era um dos países mais pobres do mundo, e veja ela agora. O que aconteceu? Um investimento consistente e abrangente na educação científica e na formação de engenheiros de alto nível. Já o Brasil, com essas políticas de corte às pesquisas e universidades em geral, está se condenando a ser um país de segunda categoria, um comprador de tecnologias, vendendo soja e comprando iPhones, sem chance de competir no mercado econômico mundial como criador de tecnologias e patentes de impacto. Vejo a Índia e a China indo à Lua, e o Brasil mal sustentando seu programa espacial. Que visão é essa para o futuro do país?
Já sofreu preconceito por ser cientista e tratar de espiritualidade?
Ainda não. Os tempos estão mudando e os que poderiam me atacar não me intimidam. Na verdade, sou uma voz contra os extremos, tanto do ateísmo radical quanto da religião radical. Essa é a vantagem de ser um cientista ativo, fazendo pesquisa de ponta, além desse trabalho como intelectual público investido na disseminação da ciência. Com essa credibilidade e respeito profissional, fica difícil me criticar de forma realmente significativa. Além do mais, muitos cientistas de excelente nível no mundo são pessoas religiosas. Essa ideia de que cientista é ateu por definição é falsa.
Qual é a importância da ciência e da espiritualidade nos dias de hoje?
Diria que ambas são essenciais. A ciência, obviamente, determina em grande parte a vida que temos hoje, dos celulares e tecnologias digitais às práticas de extração mineral às curas medicinais. A religião, em países como o Brasil, sempre teve um papel social muito importante; as pessoas se identificam com uma religião e encontram sua comunidade e um senso de dignidade nela. O diálogo entre as duas é, portanto, essencial, dado que ambas são aspectos complementares dos questionamentos que temos como humanos.
Como fazer ciência e espiritualidade caminharem juntos?
A ciência tem, claro, seu lado aplicado e determinado pelo funcionamento do mundo material. Por outro lado, eu vejo a ciência como um portal para questionamentos existenciais muito mais antigos do que a própria ciência: de onde viemos, por que estamos aqui e para onde vamos, enquanto espécie e enquanto indivíduos em busca de uma vida com propósito. A ciência moderna abrange, em parte, essas questões. Quando entendemos que somos criaturas raras num planeta ainda mais raro, entendemos que temos um imperativo moral de proteger a vida e o planeta em que vivemos com tudo o que temos. Não existe outra alternativa!
Precisa ser espiritualizado para estudar espiritualidade?
Para estudar espiritualidade não; para ser uma pessoa aberta a uma visão espiritual do mundo, sim. Isso significa uma compreensão visceral de que somos parte de algo muito maior do que nós, de uma história cósmica muito mais antiga do que a nossa espécie, que somos como o universo pensa sobre si mesmo. Uma visão espiritualizada da realidade significa uma abertura que vai além do racional para o mundo e nossa existência.