Pra lusofonia nasce um novo dia
Em 2005 conheci um professor de Língua Portuguesa que fazia versos, e os recitava tanto no palco quanto em sala de aula. Passei a ver com outros olhos o ritmo e a poesia, e deixei de ser espectador para começar a estimular essa história. Eduquei meus ouvidos, e meu olhar, acompanhando o Hip Hop carioca, e tomei o professor como meu principal personagem. Vi nascer uma Nova Lusofonia, onde irmãos estão sentados na mesma mesa, ou em pé no mesmo palco. Se alimentam de música e rimas, e quase ninguém parece se importar com as diferenças da fala a ponto de atrapalhar a curiosidade transatlântica em conhecermos uns aos outros. E à frente dessa cruzada cultural, uma série de rappers lusófonos iniciaram há 20 anos, um movimento silencioso utilizando a internet, poucos recursos e muita criatividade para produzir faixas e discos.
Vinícius Terra, 34 anos, carioca, rapper, também professor de Língua Portuguesa e importante articulador da cultura Hip Hop carioca, é idealizador do FESTIVAL TERRA DO RAP, que chega à sua terceira edição. Por pouco o evento não acontece, não fosse terem sido contemplados num edital de fomento à cultura da Prefeitura do Rio de Janeiro. O mundo inteiro hoje, qualquer que seja o país, ouve uma palavra em uníssono: crise. Isso afetaria diretamente o evento, mas é a persistência desse personagem e sua sócia, Cleide Fonte, produtora cultura carioca, que através da REPProdutorA – Ritmo e Poesia Produtora Artística, promovem a cultura urbana no Rio de Janeiro, e no Brasil. Quase sem dormir pra poder fazer o festival acontecer, uma notícia já durante a semana do evento abala os artistas e a produção.
MCK, um dos principais rappers de Angola, convidado do festival deste ano, é proibido de embarcar no aeroporto de Luanda “sob ordens superiores”, e deixa todos apreensivos no Rio de Janeiro. “Só te entregaremos teu passaporte quando o avião pro Brasil descolar” disse o agente da imigração. Isso acendeu uma luz nesse grupo de pessoas reunidas no Centro de Referência da Música Carioca, na Tijuca, e deixou mais relevante o tema do festival este ano: “África Lusófona”. Como um alto-falante e ao mesmo tempo fomentador de uma plateia mais crítica e mais atenta, o FESTIVAL TERRA DO RAP abraçou a questão dos 16 presos políticos em Angola (veja o caso aqui), muitos deles amigos de MCK, e fez com que a juventude brasileira pudesse acompanhar e pensar a respeito do caso, bem como pressionar os consulados no Brasil e em Angola para receber informações oficias claras sobre o que estava a acontecer.
Com muito barulho, a produção do festival acaba por reverter a situação e consegue o aval oficial do governo angolano para deixar o artista viajar. Mas nada me parece mais justo e de direito do que ouvir um artista de expressão, sem repressão. MCK entrou com recursos em Angola, e aguarda resultados e respostas, bem como reparação pela perda da passagem, a qual fez questão de comprar pessoalmente para honrar sua agenda. Aproveitamos e filmamos o MCK falando sobre o assunto, durante sua chegada ao Brasil. Uma pequena vitória, que permitiu a vida continuar um fluxo mais produtivo, ao invés de insistir em apontar culpados numa história tão injusta de massacre e opressão do negro no Brasil, em África, no mundo.
Durante os dois primeiros dias, DJ Caíque e Mestre Xim, produtores e beat makers, receberam Alexandre Diaphra, artista angolano radicado em Portugal, ou “Biru” pros mais antigos. Os três participaram de uma oficina para novos talentos do rap, ávidos por saber como se separa um beat, como se produz melhor um loop, o que encaixa aonde. Foi incrível perceber que até mesmo os produtores começavam a olhar pro que estava acontecendo com uma energia diferente. A biblioteca de beats estava ali, aberta, era pegar, aprender e rimar em cima. Uma generosidade que é a base do real Hip Hop. A relevância do festival eu vi no olhar de cada gajo que pisou naquele palco.
Nos ensaios, NBC (São Tomé e Príncipe – radicado em Portugal, MCK (Angola), Mamy The Miss Skills (Angola), Gól Wayne (Cabo Verde) Aori (Brasil, Rio de Janeiro), Antiéticos (Brasil, Rio de Janeiro), Carta na Manga (Brasil, Rio de Janeiro) e Janine Mathias (Brasil, Paraná), se preparavam para o FITA MISTURADA, um live act onde os artistas apresentavam parte do trabalho que desenvolvem em seus países. Isso foi um caso à parte, bem como as intervenções dos DJs, Dj Tamy, Dj Will e Gabriel Marinho “Mondé”.
Em dado momento, Alexandre Diaphra, Donatinho, músico carioca renomado, e BNegão, rapper carioca, promoveram uma homenagem musical ao maestro do Canão, o rapper paulista Sabotage. O piano deu um tom a mais para o musical. Enquanto Diaphra recitava, Donatinho acompanhava na mesma proporção. Cresciam juntos, musicalmente, ritmicamente, improvisadamente. Pra mim, poderiam ter nascido da mesma mãe, numa dimensão onde ela se chamaria “Música”. BNegão mesmo disse “Maurinho, onde estiver, tá feliz porque isso aqui era a parada dele, esse tipo de coisa era o que ele curtia”. Quando faltava DJ, entrava BNegão num beat box puxando Vinícius Terra para uma rima improvisada. E o festival seguiu assim.
O show é fruto de uma residência artística que acontece durante a semana do evento, e faz com que os artistas brasileiros, portugueses e africanos, convivam e criem juntos novos temas, novas músicas, a pensar em conjunto o bloco cultural e econômico, ainda inexplorado, que é a lusofonia. Ou melhor, a Nova Lusofonia. Pensar em um novo modelo onde a juventude artística tem um papel importante na promoção dessa aproximação entre os povos, é fazer o Oceano Atlântico se tornar uma gota d´água ante à vontade de estarmos juntos no mesmo palco, a falar a o mesmo idioma, cada qual com seu sotaque.
Um dia antes do FITA MISTURADA, o debate “A África é aqui – a importância da matriz africana na construção do Rio de Janeiro. O papel do imigrante luso africano na sociedade do século XXI” teve a presença de Écio Salles mediando um papo com Rafael dos Santos, Danielle Ramalho e o rapper NGambala de Angola. Fui convidado pra dar minha visão, e confesso que mais vivi um divã. Porque em dada hora nós, brasileiros, não conseguimos entender o quão indígenas, portugueses e africanos somos. A diferença fica evidente na cor da pele, porém, é muito parecido tudo aquilo que vivemos em nossos países. Fome, miséria, violência. Você encontra isso no povo e nas rimas de cada rapper que participou desta edição do festival. Participar do debate me abriu a cabeça para pensar, discutir, argumentar. Ouvir.
Não haveria melhor maneira de encerrar estes tantos parágrafos de reflexão pessoal e visão particular dos fatos, sem agradecer a todos que conheci durante esta semana. Tem um mecanismo dentro desse movimento do rap lusófono que é muito baseado em amizade, respeito e generosidade. Não há dúvidas, ao menos pra mim, de que são os rappers os novos trovadores, e de que a lusofonia experimenta um novo dia, onde o sol reflete não apenas temas bonitos, mas verdades urgentes.
Jamais se produziu tanto em termos de escrita na história do planeta. Na internet, o português tem o terceiro lugar em termos de idioma mais utilizado na web. E se, de fato, o idioma em sua forma escrita nasceu por conta da necessidade de registrar o que se fala, poderemos experimentar nas próximas décadas uma verdadeira revolução digital e literária. Cada vez mais próximos, jargões e expressionismos poderão invadir velozmente a casa de angolanos, brasileiros, portugueses, cabo-verdianos, são-tomenses, e tantos outros conectados a partir de agora por tantas diferentes maneiras.
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