Segundo o IBGE, existem atualmente no Brasil cerca de 305 etnias indígenas. Quantas delas você é capaz de nomear? Cinquenta? Dez? Pergunte ao seu redor e conte quantas pessoas citam mais do que cinco nomes. Pois aí está a prova para o que muitos brasileiros não entendem: pouco – ou quase nada – sabemos sobre a nossa própria gente, sobre o berço da nossa cultura.
O fotógrafo Renato Soares trabalha registrando aspectos da cultura indígena há quase 30 anos. Após diversos trabalhos com tribos como Xingu, Kalapalo, Kuikuro, Xavante e muitas outras ao redor do Brasil, o documentarista decidiu embarcar num projeto ambicioso: de registrar e documentar o maior número possível de informações sobre esses povos e formar o mais completo acervo de imagens brasileiro sobre essa cultura.
– Eu sempre fotografei a personagem do índio, comecei a retratar os índios desde que comecei na fotografia, este é um projeto de vida – explicou em entrevista exclusiva à Conexão Lusófona.
Para financiar o projeto, foi criada uma campanha de crowdfunding na plataforma Kickante, por meio da qual é possível participar na construção do maior acervo sobre a cultura indígena brasileira. A verba coletada na campanha ajudará a financiar a primeira etapa do projeto, a Expedição Curt Nimuendaju – No Caminho dos Timbiras, que tem previsão de duração de três meses. Os apoiadores do projeto receberão como recompensa um livreto de cordel “Ameríndios do Brasil – Os Timbiras”, que mostrará em imagens e textos os resultados da expedição.
“Ameríndios do Brasil é o registro fotográfico da diversidade das várias nações indígenas e sua cultura diante da civilização conquistadora. Trata-se do resgate, através da imagem, desse personagem que se encontra enraizado em nossa alma. Seus rituais que atravessaram o tempo e suas histórias que nos levam a um mundo nunca antes imaginado”, explica o texto de apresentação do projeto.
Leia a entrevista completa com o fotógrafo Renato Soares:
Conexão – Como surgiu o projeto Ameríndios do Brasil?
Renato Soares – Eu comecei este projeto pessoal de retratar o índio desde que iniciei na fotografia. No ano que vem vou completar 30 anos de fotografia, então começou há muito tempo (risos). Há dez anos, mais ou menos, resolvi voltar totalmente os olhos somente para este projeto. No Brasil infelizmente quase não existem profissionais da fotografia que trabalham com um tema especifico, especialização é um tema muito raro no Brasil, pois é difícil sobreviver da fotografia trabalhando com um tema único. Aqui no Brasil, o fotógrafo retrata um tema pela manhã, outro pela tare e um terceiro à noite. Para me sustentar com um único tema, encontrei a saída de vender esta imagem no mercado, pois o mercado editorial sempre teve carência de um material (que retratasse a temática indígena) que tivesse a questão dos direitos de usos de imagem resolvida, principalmente para ilustrar livros didáticos.
Conexão – Quantas línguas e povos já conhece?
Renato Soares – Já retratei quase 40 etnias. Eu falo com fluência o Jê, mas entendo com tranquilidade as outras línguas do mesmo tronco linguístico. Às vezes, a comunicação é o próprio olhar e o silêncio. Estive com os Mayouruna no Vale do Javari, em 1991, cuja língua eu não falava e eles não falavam o português, fiquei lá um mês sem entender nada da língua. Mas eu entendo de gente, um olhar às vezes basta.
Não sei bem o número exato de etnias que já retratei, pois não quero contar agora, só quando estiver mais para a frente. Honestamente, eu não sei se vou conseguir fotografar todas as 305 etnias que existem atualmente, já estou com 50 anos de idade… Mas nunca ninguém fez, por que não pode ser feito? Não tenho medo de me expor a isso e de buscar a possibilidade.
Por isso criei o projeto Ameríndios do Brasil. São centenas de etnias, que falam mais de 270 línguas e o brasileiro não conhece…
Conexão – É mesmo um projeto de vida, a longo prazo.
Renato Soares – No fim das contas pouco importa a quantidade exata de etnias retratadas, este registro é muito importante porque o índio brasileiro é muito mal visto e mal fotografado. A imagem que que se te tinha dos índios até pouco tempo atrás, é a da criança, ao lado de um cão sarnento, é um índio pobre. Os índios com que me encontro eu olho nos olhos, eu não vejo nada disso. Atualmente, os índios montaram as suas associações, estão começando a entender dos seus direitos, como por exemplo os direitos de imagem. Muitos fotógrafos ficaram famosos retratando índios, mas nunca vi nenhum deles dividindo os louros e os lucros deste trabalho com eles.
No fundo, o que eu fotografo é o outro. E para retratá-lo com alguma dignidade é como retratar a mim mesmo. Querer que as “nossas pessoas” estejam bem é o sonho de qualquer humano, é o simples e o básico da vida: queremos viver bem, estar bem. Estes “índios típicos dos anos 1990”, com os quais eu já me deparei várias vezes – conheci famílias que vivem na beira das estradas, foram expulsos das suas terras com tamanha violência que dizer para eles voltarem para a sua terra enche-os de medo. Os índios Kaiowá vivem isso, por exemplo. Por mais miserável que voce esteja, voce não quer voltar para aquele lugar de violência. No Mato Grosso do Sul encontrei famílias vivendo dentro dum matadouro abandonado. Esta região é o grande barril de pólvora das questões indígenas de terras no país, que não reconhece e não aceita a condição do índio, não o reconhece nem como dono da terra, nem como ser humano, porque quando você o coloca nessas situações é a prova de que não o considera humano.
Conexão – Como vai funcionar o crowdfunding? O projeto é ambicioso, mas as cotas que pede são singelas…
Renato Soares – A campanha é para financiar a expedição com os Timbira. como eu sei que as pessoas não podem dar muito dinheiro, Ao montar a campanha, optei por cotas de R$ 35 (aproximadamente 10€). É um valor acessível e todos os participantes são recompensados com um livreto de cordel com fotografias e textos sobre a expedição. Mas tomemos o meu perfil pessoal do Facebook como exemplo: de 5 mil amigos que tenho ali, uma boa parte não participa, não vê e não percebe o que acontece ao redor. Fiquei imaginando isso: dos 5 mil amigos virtuais, se mil pessoas colaborarem, o projeto vai ser realizado! É uma coisa simples direta e sem muitos rodeios. Quase como a filosofia dos índios.
Conexão – É por isso que você costuma dizer que “o índio no Brasil não existe porque não é visto”? As novas tecnologias podem ser uma forma de voltar a “existir” para os índios, de colocar o assunto na agenda do país?
Renato Soares – Quando deixamos de ser vistos, corremos o risco de ser esquecidos. Quando somos esquecidos, somos colocados à beira das estradas, somos abandonados. O índio, mesmo vestindo cocares de pena, andando nu, ele tem o direito de ter um sistema de comunicação mesmo virtual, porque é uma forma de se comunicar ao mundo o que acontece. Para alguns indigenistas, “índio bom é índio isolado” na selva. Mas acontece que na selva, os inimigos da etnia são as madeireiras, as mineradoras, até o próprio governo, que não os reconhece. Quando estamos totalmente isolados da sociedade, corremos o risco de sermos eliminados, é o que aconteceu com os Guarani: é como se eles não existissem, porque ninguém os ouve.
Conexão – Em 2013 no Brasil houve uma onda de pessoas que inseriram no nome de usuário no Facebook o termo “Guarani Kaiowá”, muita gente mantém até hoje. Acha que é também uma forma de chamar atenção para a causa?
Renato Soares – É interessante porque as pessoas passaram a ver que existia um personagem que está entranhado na alma brasileira! Mas não adianta você levantar uma bandeira se não levanta uma ação. Bandeira virtual sem ação nenhuma não tem lógica. Os índios foram levados a terem vergonha do que são, e isso não pode seguir assim.
Conexão – Mas o contato com a língua portuguesa e com a tecnologia não pode anular a cultura tradicional dos povos?
Renato Soares – Os Krahô, por exemplo, têm 250 anos de contato com o homem branco. Ontem mesmo eu estava falando com um amigo que é Krahô, está fazendo faculdade no Tocantins e é professor indígena. Mas quando ele esta no âmbito social familiar dele, ele está com a família e volta à sua cultura. Há coisas que não saem da pessoa, ela é o que é. Eu, por exemplo, me identifico muito com a cultura indígena, não quero mais fazer aquilo que não gosto e não me dá prazer, estou quase virando índio! Mas nunca o serei, pois não posso ser aquilo que eu não nasci para ser…
Conexão – E como é este modo de vida?
Renato Soares – É viver por simplesmente viver, sem estabelecer uma meta de vida, sem o pensamento do acúmulo de riquezas. A meta dele é viver hoje, amanhã e depois, assim por diante, ele se preocupa muito com o momento do agora, não está preocupado em acumular. A vida de um fotógrafo de tribos indígenas é a vida de quem vai fazer trancho na floresta, já peguei algumas malárias… Mas não é mais perigosa do que na cidade: aqui (Renato vive atualmente em São Paulo) você pode morrer atropelado na rua, lá você pode morrer de malária, ou de tiro de um madeireiro revoltado, nada que me tire o foco.
O acervo final terá várias utilizações e será dirigido à educação de diversas maneiras: livros didáticos e paradidáticos, livros de arte, editoriais, palestras e conferências interativas, ações institucionais, exposições fotográficas, produções audiovisuais, tecnologias virtuais e outras mídias.
Mergulhe no trabalho do Renato neste filme, com fotos dele realizadas no Xingu: