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Os brasileiros são uma “alteração climática” no surfe mundial

O domínio brasileiro no mundo do surfe nem sempre foi uma realidade

(Imagem: Reprodução Jeremy Bishop)

Começou esta semana a última etapa do circuito mundial de surfe. Na corrida ao título mundial estão os brasileiros Gabriel Medina e Filipe Toledo e o australiano Julian Wilson. Só este ano, oito das 10 etapas foram vencidas por atletas brasileiros. Mas qual é segredo para este domínio absoluto?

 

A expressão “Brazilian Storm” (Tempestade Brasileira, em tradução livre) foi criada em 2011, pela imprensa americana, para descrever a nova geração de surfistas brasileiros que tem ganhado destaque no atual cenário competitivo do surfe mundial. Contudo, este fenómeno não é de agora e foram dois surfistas canarinhos que construíram os alicerces para o atual momento.

 

Dupla dinâmica abre caminho para o circuito mundial

 

No final dos anos 80 e início dos 90, os surfistas Fábio Gouveia (Paraíba) e Flávio “Teco” Padaratz (Santa Catarina) abriram as portas do circuito mundial para o Brasil. Inclusivamente, o paraibano foi campeão mundial amador em 1988, em Porto Rico.

 

Antes deles, poucos brasileiros se destacavam no cenário competitivo internacional, com exceção das vitórias de Pepê Lopes (1976) e Daniel Friedman (1977), nas primeiras duas edições do circuito mundial no Brasil, o Waimea 5000, no Arpoador (Rio de Janeiro). Ainda em 1976, Pepê Lopes chega à final da mítica etapa do Pipeline Masters, no Havaí, classificando-se em 6.º lugar.

 

Somente em 1990 é que veríamos outro brasileiro a conquistar uma etapa do mundial, no Hang Loose Pro Contest, no Guarujá (São Paulo). Fábio Gouveia quebrou esta longa travessia no deserto e, no ano seguinte (1991), foi a vez de Flávio “Teco” Padaratz vencer o Alternativa Pro, na Barra da Tijuca (Rio de Janeiro). Também nesse ano, o parabaiano venceu no Arena Surf Masters, em Biarritz, França, e no Hard Rock Cafe World Cup, em Sunset Beach, no Havaí.

 

Em 1992, a Association of Surfing Professionals (antecessora da atual World Surfing League), criou as duas divisões do tour mundial: o World Championship Tour (WCT) e o World Qualifying Series (WQS). No primeiro estavam os 44 melhores atletas e, para se chegar a este grupo restrito, tinha que se disputar o circuito de qualificação — o WQS.

 

A “Brazilian Storm”, constituída por (da esq. para a dir.) Miguel Pupo, Jadson André, Ítalo Ferreira, Gabriel Medina, Wiggolly Dantas e Filipe Toledo (Imagem: Reprodução Notícias do Mar)

Fruto desta divisão, a Associação Brasileira de Surfe Profissional (ABRASP) abriu o circuito nacional ao QS, o que permitia a participação de estrangeiros. Em termos práticos, os estrangeiros não atrapalhavam o atleta brasileiro, já que não pontuavam para o circuito local.  Automaticamente, o nível de surfe subiu em bloco, assim como as premiações, ajudando a fortalecer o surfe profissional no país e a preparar o terreno para o passo seguinte, a internacionalização.

 

A melhor classificação de Fábio Gouveia e “Teco” Padaratz no circuito WCT  foi um 5.º lugar e um 8.º lugar, em 1992 e 1994, respetivamente. A partir daí, toda uma nova geração de surfe brasileira tomou de assalto o circuito mundial, com nomes como Victor Ribas, Guilherme Herdy, Renan Rocha, Peterson Rosa, Jojó de Olivença, Ricardo Tatuí, Tinguinha Lima, entre muitos outros.

 

Todos juntos, ombrearam, lado a lado, com as outras potências mundiais do surfe, Estados Unidos da América e Austrália. Esta ascensão meteórica foi visível em 1994, quando oito dos atletas que integravam o top 44 eram brasileiros, tornando-se a terceira potência do surfe mundial. Contudo, faltava o elemento do sucesso, leia-se, vitórias.

  

Língua portuguesa domina o surfe mundial

 

Num desporto que outrora era dominado por anglo-saxões, e em que o inglês era a língua dominante, nos dias de hoje, dos 33 atletas que fazem parte do circuito mundial, 14 têm o português como língua materna (entre eles o surfista de Portugal, Frederico Morais) e a tendência é para aumentar. Até ao momento, dois surfistas brasileiros sagraram-se campeões do mundo: Gabriel Medina, em 2014, e Adriano de Sousa, em 2015.

 

Este ano, em dez etapas do circuito mundial de surfe realizadas até ao momento, oito foram vencidas por brasileiros. A saber, Italo Ferreira (Bells Beach, Austrália, Keramas, Bali, Indonésia e Supertubos, Peniche, Portugal), Filipe Toledo (Saquarema, Rio de Janeiro, Brasil e Jeffreys Bay, Eastern Cape, África do Sul), Willian Cardoso (Uluwatu, Bali, Indonésia) e Gabriel Medina (Teahupo’o, Tahiti e Lemoore, Califórnia, EUA). As outras duas etapas — Gold Coast, Queensland (Austrália) e Landes, Nouvelle – Aquitaine (França) — foram conquistadas pelo australiano Julian Wilson.

 

E qual a razão desta mudança de paradigma no cenário competitivo? O diretor da extinta revista portuguesa Surf Portugal, João Valente, destaca o lado competitivo dos brasileiros, aliado ao facto de ser um país “com uma costa [marítima] gigantesca, que apesar de não ser das melhores do ponto de vista da formação das ondas, tem-nas em abundância, e é um país com água quente.”

 

Apesar de um forte crescimento económico do país no início dos anos 2000, tal facto não beneficiou a modalidade; ao invés, houve um desinvestimento das próprias marcas de surfe. “A partir da segunda metade da primeira década dos anos 2000, as empresas do surfe reduziram imenso os seus investimentos, o que originou casos de surfistas brasileiros do circuito mundial que não tinham patrocínios, e uma diminuição do número de atletas no WQS”.

 

Apesar destas limitações, João Valente é da opinião que o surgimento de uma 2.ª geração no surfe tenha contribuído, e muito, para esta mudança de guarda. Como exemplo refere o caso de Filipe Toledo, filho do bicampeão nacional, Ricardo Toledo.

 

“Começa a haver um trabalho de casa desde muito cedo e mesmo que não tenham oportunidade de viajar, podem aprender com os próprios pais”.

 

Como anteriormente mencionado, a modalidade foi dominada largos anos pelos anglo-saxões. Americanos e australianos não viram com bons olhos esta avalanche brasileira, com comentários menos simpáticos nas redes sociais. João Valente desvaloriza por completo esta situação, preferindo entrar por um outro campo, o do investimento.

 

“É claro que ninguém gosta de ver o seu poleiro invadido. Há muito tempo que os brasileiros estão inseridos na estrutura do próprio desporto, numa primeira fase a nível de dirigentes e mais tarde ao nível dos atletas. Duvido que a WSL ache interessante, para o seu plano de negócios, que o surfe esteja a ser dominado pelos surfistas brasileiros, porque se ao nível de rivalidades é bom, pelo lado do investimento é mau. Os grandes patrocinadores que a WSL precisa e procura não estão no Brasil. Acredito que seja mais difícil convencer uma multinacional a investir numa modalidade dominada por brasileiros”.

 

João Valente afiança que este domínio brasileiro é apenas uma questão cíclica, “não vai durar para sempre”. E é totalmente contra esta denominação de “Brazilian Storm, porque as tempestades vêm e passam”, preferindo antes apelidá-la de “alteração climática no mundo do surfe”.

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