Os 50 anos do movimento Tropicália: que Brasil queremos agora?
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Foi em 1968 que um grupo irreverente de jovens músicos brasileiros decidiu romper as regras culturais vigentes. Dinamizado por Caetano Veloso e Gilberto Gil (ambos nascidos na Bahia, em 1942), o movimento Tropicália é simultaneamente uma valorização do passado e um elogio do futuro. Ao prodigioso som da Bossa-Nova de Tom Jobim e Vinicius de Moraes criada na década de 50, acrescentaram os ritmos psicadélicos da estética rock americana e o rigor erudito da tradição clássica, para revolucionarem as potencialidades da Música Popular Brasileira (MPB) e, deste modo, projectarem definitivamente o Brasil no caminho da modernidade artística.
Os tempos, porém, eram sombrios. A Ditadura Militar governava autocraticamente o país desde 1964 e estava longe de conceder às novas gerações a abertura necessária à liberdade criadora. Inconformados com esse contexto de repressão e intolerância, os jovens músicos fundadores da Tropicália agiram no sentido de agitar comportamentos convencionais e celebrar a diversidade de uma cultura riquíssima em referências.
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A Tropicália herdou a linguagem plástica e provocadora da poesia do Concretismo. Reivindicou a proposta ideológica e estética do Movimento Antropofágico (anos 20) e ainda exaltou a imagem difundida pela Pop Art que apelava a uma nascente sensibilidade rebelde, rejuvenescida e insubmissa. Desta forma, os tropicalistas procuravam a internacionalização da moderna cultura brasileira, cruzando o ancestral e o popular com o futurista e o experimental, através de actuações que desafiavam os preceitos da ordem moral, política e social.
Apresentando-se com longos cabelos, roupas intensamente coloridas e exóticas e instrumentos tão diversos como a guitarra eléctrica, o violino e o berimbau (aliando sempre o registo moderno, clássico e arcaico), os novíssimos músicos da Tropicália, fazendo uso da paródia, da ironia e do excesso, determinados a questionar a autoridade e a censura, começavam a desenhar uma carreira memorável.
É proibido proibir – um Maio de 68 nos Trópicos
A televisão revelou-se um meio eficaz de promoção e divulgação do trabalho destes talentosos artistas. Em 1967, no III Festival de Música Popular Brasileira realizado em São Paulo e exibido pela TV Record, Caetano Veloso – com o tema Alegria, Alegria – e Gilberto Gil acompanhado pelo grupo Os Mutantes – interpretando Domingo no Parque – protagonizavam aqueles que são considerados os hinos fundadores do movimento tropicalista.
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No ano seguinte, em 1968 (data da promulgação do Acto Institucional nº 5 que formaliza oficialmente a instauração da Ditadura Militar com base na limitação das liberdades civis e de expressão) era lançado o álbum Tropicália ou Panis et Circencis, o manifesto poderoso e arrojado de Caetano, Gilberto Gil, Gal Costa, Nara Leão, Tom Zé e dos poetas Capinam e Torquato Neto para a viragem radical da música popular brasileira, considerado pela revista Rolling Stone Brasil o segundo melhor disco de sempre da História da música brasileira (só ultrapassado por Acabou Chorare, divulgado em 1972 pelos Novos Baianos).
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No entanto, este espírito revolucionário e emancipador acabou por custar caro aos expoentes do movimento Tropicália. Caetano e Gil foram detidos pelas autoridades militares por terem alegadamente desrespeitado o hino e a bandeiras nacionais durante um show no Rio de Janeiro. Na verdade, o episódio que despoletou a ira dos censores foi o facto de Caetano ter utilizado uma bandeira alternativa criada pelo artista plástico Hélio Oiticica (1937-1980) preenchida com a inscrição Seja Marginal, Seja Herói, representando a figura do Cara-de-Cavalo, famoso traficante barbaramente assassinado pelas forças policiais do regime.
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Presos inúmeras vezes e impedidos de dar entrevistas ou actuar em concertos, os dois músicos estiveram exilados em Londres entre 1969 e 1971, só regressando ao Brasil no ano seguinte. Com o colectivo desfalcado, Gal Costa (Salvador, n. 1945) viria a assumir a liderança da segunda fase do movimento, marcado agora por um sentimento de abandono, derrota e desilusão.
Do fim da Ditadura Militar à actual presidência
Desde a fundação do movimento Tropicália, autêntica pedrada no charco da cultura brasileira, 50 anos se passaram sobre a agitada história política brasileira. A Ditadura Militar – pôs fim a 3 anos de presidência de João Goulart, tendo governado o país entre 1961 e 1964 – que dirigia o Brasil de forma intransigente com base na repressão, na perseguição de opositores políticos e na tortura, terminou em 1985 e o país voltou a “redemocratizar-se”.
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Seguiu-se um período histórico de relativa acalmia política. Em 1985, Tancredo Neves marca o regresso da soberania popular ao poder, baseada nos princípios da liberdade individual, igualdade perante a lei e sufrágio universal, consagrada na actual Constituição Brasileira que José Sarney aprovou em 1987.
Fruto do seu bom trabalho enquanto Ministro da Fazenda no governo de Sarney (equivalente à pasta das Finanças, em Portugal) e graças ao bem-sucedido Plano Real, que estabilizou a economia brasileira, Fernando Henrique Cardoso assumiu o executivo em 1995, sendo reeleito em 1998.
Lula da Silva (do Partido dos Trabalhadores) tornou-se presidente do Brasil em 2002, cargo que desempenhou durante 8 anos, até que em 2010 transfere a faixa presidencial para Dilma Rousseff, a primeira mulher a alcançar o Palácio do Planalto na História brasileira.
Contudo, devido a fortes contestações populares e estudantis, à subida do desemprego, aos múltiplos casos de corrupção e à recessão económica, a presidente Dilma acabou por sofrer um processo de impeachment decretado pela Câmara dos Deputados (uma decisão apoiada também pelo Senado) em 2016.
A consequência desse afastamento foi a chegada de Michel Temer ao poder, um dos presidentes mais impopulares da história política brasileira, acusado pela justiça de vários crimes de falsificação de documentos, branqueamento de capitais e fraude fiscal.
Para agravar o contexto político no Brasil, o juiz Sérgio Moro, liderando, desde 2014, a maior operação policial da história recente do país, a Lava-Jato, que desvendou uma rede tentacular entre a Petrobras, – maior empresa petrolífera estatal brasileira – as grandes construtoras e a elite política dos principais partidos.
No olho do furacão foi apanhado Lula da Silva e as cúpulas do PT. O antigo presidente trabalhista foi condenado – em Abril deste ano – a cumprir uma pena de prisão superior a 12 anos, em Curitiba, tendo sido também impedido pelo Tribunal Superior Eleitoral de concorrer às eleições presidenciais que se disputam neste momento no Brasil.
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Diante dessa imposição, Lula delega em Fernando Haddad, antigo prefeito de São Paulo e ex-ministro da Educação dos governos petistas, a função de o representar na campanha presidencial do PT. Porém, essa estratégia tem vindo a ser abandonada por Haddad, apostando agora numa candidatura mais autónoma e desligada da figura do antigo líder do Partido dos Trabalhadores.
Os resultados eleitorais da primeira volta já são conhecidos. O candidato da extrema-direita, Jair Bolsonaro (PSL), capitão na reserva e admirador dos valores da Ditadura Militar, líder de mentalidade racista, homofóbica e machista, conquistou praticamente 46% dos votos nas urnas – o seu eleitorado é maioritariamente formado por homens brancos, ricos, com curso superior e de confissão evangélica -, contra 29% dos votos obtidos pela candidatura de Fernando Haddad.
Para onde vais, Brasil?
A missão de revitalizar o sistema democrático no Brasil divide a nação. Perante estes resultados altamente polarizados (o centro direita e o centro esquerda quase ficaram esvaziados) os brasileiros terão que decidir definitivamente na segunda volta destas eleições o destino da própria existência da Democracia (segundo uma sondagem do instituto Datafolha, 69% dos cidadãos brasileiros preferem a manutenção do regime democrático como a melhor forma de governo do país).
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A tensão e a violência contribuem para enfraquecer a união entre os brasileiros. Romualdo Rosário da Costa, de 63 anos, mais conhecido como Moa do Catendê, célebre mestre de capoeira de Salvador da Bahia, é um dos mártires desta vaga de fanatismo que tem vindo a desestabilizar o país. Foi assassinado recentemente por um orgulhoso eleitor de Bolsonaro, após uma acesa discussão política na qual expressava a sua preferência sobre Fernando Haddad e o PT. Nas redes sociais, Caetano homenageou a vida deste histórico capoeirista e Gilberto afirmou que esta é “um das primeiras vítimas fatais dessa devastadora onde de ódio e intolerância que nos assalta nesses dias de hoje.”
Pioneiros, rebeldes, visionários e inconformados, os tropicalistas orientados por Caetano Veloso e Gilberto Gil, inscreveram a revolução da arte na agenda da política num tempo obscuro inimigo da liberdade, não através da violência ou da brutalidade, mas recorrendo aos artifícios da criação e ao génio do experimentalismo. Da Ditadura Militar imposta nos anos 60 ao país real de 2018, dividido entre a salvaguarda de uma (imperfeita) democracia e a certeza inabalável que a eminência de uma ditadura sempre contempla, que Brasil vamos querer agora? Talvez, quem saiba, um outro país do futuro.
PS: O autor deste artigo obedece às regras do antigo acordo ortográfico
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