O túnel do tempo de Alenquer
Local de reflexão e aprendizagem que nos convida a entender o passado, ao mesmo tempo que valoriza a liberdade e a tolerância de que desfrutamos no presente, o Museu de Damião de Góis e das Vítimas da Inquisição é um espaço precioso de memória que merece uma imersão.
A apenas 47 quilómetros de Lisboa, Alenquer abriga tesouros do passado que contam histórias que têm tanto de fascinantes como de sombrias. A vila, que é motivo de visita em todos os Natais pelo singular presépio, alberga outras preciosidades. No seio das ruas estreitas, jaz um tesouro histórico e cultural que vale a pena fazer-se à estrada para conhecer. Fundado em 2017, mas ainda pouco divulgado quando comparado com outras estruturas semelhantes, o Museu de Damião de Góis e das Vítimas da Inquisição desperta uma parte importante da história do país. Situado num edifício imponente, na antiga Igreja Medieval de Santa Maria da Várzea, o espaço é um memorial dedicado ao historiador e humanista Damião de Góis e às vítimas da Inquisição, em Alenquer.
A escolha do lugar foi tudo menos aleatória, tratando-se de um local intimamente ligado à figura do humanista, historiador, diplomata e funcionário régio Damião de Góis. Como descreve Maria do Rosário Costa, historiadora e diretora do museu desde a sua inauguração: “Trata-se da igreja onde foi batizado e que, mais tarde, escolheu para sua sepultura. O seu túmulo foi trasladado para a Igreja de São Pedro, também em Alenquer, onde permanece até aos dias de hoje. O que resta na antiga Igreja de Santa Maria da Várzea é uma representação simbólica do sítio onde a sepultura costumava estar. É uma simbiose dos tempos. Tempos diferentes sobre os quais as pedras, ainda do século XVI e com marcas menos simpáticas do terramoto de 1755, nos contam.
Na sala principal do Museu de Damião de Góis e das Vítimas da Inquisição, encontra-se representado um túnel, dividido em quatro partes ordenadas cronologicamente, cada uma representante de um tema, que os visitantes são convidados a atravessar, de modo a que lhes seja dada a conhecer a vida e obra da figura de Damião de Góis. É um verdadeiro túnel do tempo enquadrado nas abóbadas da igreja. “Alenquer, Terra Onde Eu Nasci”, “Damião de Góis, a Vida e o Homem”, “Damião de Góis, Homem de uma Europa em Mudança” e “A Inquisição em Alenquer” são os quatro temas de que podemos ouvir falar ao caminhar através do túnel.
O percurso museológico
A experiência do percurso museológico divide-se em dois momentos: um primeiro destinado à reflexão individual e um outro que dá azo a uma conversa multifacetada. Com o intuito de orientar um pouco mais os visitantes, a equipa de museografia instalou um painel interativo que simula uma navegação por Alenquer Medieval. É possível consultar todos os processos conhecidos, digitalizados no arquivo nacional da Torre do Tombo, de cristãos-novos e cristãos-velhos de Alenquer. Entramos, então, na questão cultural do século XVI.
No Museu de Damião de Góis e das Vítimas da Inquisição, consegue-se é aprender um pouco sobre a vida deste nome relevante da História portuguesa. Desde a sua saída de Alenquer, apenas com nove anos, para ser educado junto do rei D. Manuel, passando pela experiência como secretário da feitoria de Antuérpia e até ao enquadramento em funções diplomáticas em países como a Rússia e a Finlândia. Acabou por abraçar toda Europa do seu tempo. Quando regressa a Portugal, encontrou um país bastante asfixiado pela Inquisição. Damião de Góis – fiel ao cristianismo como cristão-velho e acabou por ser preso, julgado e condenado por luteranismo, um dos princípios centrais do protestantismo.
Damião de Góis revelou-se, como explica Maria do Rosário Costa, uma das figuras centrais da Inquisição em Portugal: “Do ponto de vista da intolerância, colocamos Damião de Góis como um dos processos centrais das famílias cristãs-novas de Alenquer, que foram sujeitas a “interrogatórios de judaísmo.”
Neste templo de memória a esta figura histórica, o visitante fica a saber que Damião de Góis conheceu e conviveu com grandes nomes da cultura e das artes, no país e na Europa. Inácio de Loyola, Martinho Lutero e Erasmo de Roterdão são apenas alguns desses nomes. “Foi um homem que se revelou em cada obra, em cada viagem, nas músicas que compunha e, em especial, na forma como via o mundo. É fundamental partilhar o seu legado com as gerações vindouras e é esse o objetivo do Museu. Damião de Góis é celebrado nesta que é, orgulhosamente, a sua terra”, sublinha.
Maria do Rosário Costa revela ainda que “grande parte dos visitantes participa em iniciativas culturais da vila, sendo que a que se mais se destaca ocorre em fevereiro e chama-se Alenquer, Terra de Damião de Góis”. O museu dispõe, segundo a responsável, de “serviços educativos com programas direcionados para a pedagogia, o que acaba por atrair um grande público estudantil que vai do pré-escolar ao ensino secundário”.
A temática Goisiana, a própria questão da Inquisição e toda a problemática envolvente dos cristãos-novos são, no fundo, as linhas mestres do museu. Por sua vez, a arquitetura e a museografia atraem e captam, segundo a diretora, “a atenção de um público mais ligado à arquitetura de espaços, recuperação do património histórico e readaptações e novas funções sociais e culturais”. Estes foram alguns dos fatores que, acrescenta, “contribuíram para que o Museu fosse distinguido, em 2018, como um dos melhores espaços museológicos a nível nacional”.
Ao longo dos quase seis anos de abertura, o Museu de Damião de Góis e das Vítimas da Inquisição contou com mais alguns prémios e menções honrosas, dos quais se destacam os Prémios APOM, na categoria “Trabalho de Museografia”, e “Projeto de Educação e Mediação Cultural”, os European Heritage Awards/ Europa Nostra Awards 2022, na categoria “Citizens’ Engagement and Awareness Rasing”, entre outros.
Forte aposta na memória
Contrariando a ideia de que falta divulgação a este espaço, Carla Mata, chefe da Divisão Municipal de Cultura e Identidade Cultural, considera que “é feita, em Alenquer, uma forte divulgação dos espaços museológicos”. A vereadora não se refere apenas a este museu em particular, mas também aos restantes três estruturas que se localizam na vila: o Museu do Vinho, o Museu do Castelo de Alenquer e o Museu do Presépio. “O horário altamente favorável de todos os museus em Alenquer é uma das formas de garantir uma boa adesão por parte dos habitantes locais. Estão abertos de terça-feira a domingo, incluindo feriados”, indica. Nesta senda, a autarquia aposta também em questões de acessibilidade, optando por entradas e visitas guiadas completamente gratuitas. Valorizam os públicos mais jovens e, nesse contexto, desenvolvem, anualmente, iniciativas escolares e programas em família aos fins de semana.
No museu, aborda-se a questão judaica relacionada com a judiaria que existiu em Alenquer e que nunca foi alvo de grandes estudos, aspeto que a chefe da divisão municipal de Cultura considera “um infortúnio”: “O Museu de Damião de Góis e das Vítimas da Inquisição tem uma identidade muito própria e distingue-se dos demais devido a algumas peculiaridades que apresenta. É um museu sem peças ou fotografias. Vive do espaço e, principalmente, da figura e conteúdos ligados ao humanista Damião de Góis.”
Há seis anos de portas abertas, a diretora Maria do Rosário Costa tem a certeza que o papel do museu em 2017 foi cumprido e que a aceitação, tanto a nível local como nacional foi extremamente positiva. “De norte a sul do país, apresentámo-nos como um cartão-de-visita que Alenquer, culturalmente, acrescentou de interesse e valor.” Contudo, considera, à semelhança de Carla Mata, que “o museu não cai fora de uma estratégia cultural do município”, sublinhando que “está tudo integrado”.
Por Ana Rita Vicente, aluna da licenciatura em Jornalismo da Escola Superior de Comunicação Social de Lisboa.
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