O Parque Nacional da Gorongosa (PNG), situado na zona central de Moçambique, ficou devastado durante a guerra civil de 1977-1992, que terminou há pouco mais de 25 anos. As cicatrizes que ficaram não eram apenas visíveis no meio natural da área, que antes dos confrontos era arrebatador e cheio de vida e, depois, se tornou num local de poeiras e sofrimento; essas marcas ficaram, também, em toda a vida selvagem que habitava o parque, povoando-o com a sua beleza, e que durante o conflito foi vitimizada para servir de alimento, de fonte de lucro ou de diversão. À guerra juntaram-se as incursões, anteriores e posteriores, protagonizadas por grupos de rebeldes que igualmente representaram uma ameaça à recuperação do local.
As espécies que por aí andavam, nos tempos áureos da natureza moçambicana e, em específico, do parque de Gorongosa, poderiam ser um pouco assustadoras para a maioria dos mortais: elefantes, crocodilos, leopardos, zebras, hipopótamos, búfalos, leões, entre outras. Mais assustador ainda é saber que cerca de 90% delas desapareceu entre os anos de 1975 (quando Moçambique obteve a sua independência de Portugal) e 1992 (fim da guerra civil). Os que ficaram tornaram-se agressivos e ficaram com medo dos humanos, como resultado de todos os maus tratos que testemunharam e dos quais foram vítimas.
A recuperação e o repovoamento do parque só foram possíveis graças ao investimento de um filantropo – Greg Carr -, responsável pela Fundação Carr. Em 2008 iniciaram-se as conversações com o governo moçambicano e, a partir desse momento, nasceu uma parceria que revolucionou o panorama que até aí se vivia em Gorongosa – e que não passava apenas pelo restauro do parque, mas também pelo “restauro” da sociedade. Hoje, o cenário é verdadeiramente animador, não só para os animais – que já começaram a regressar ao seu habitat – como para as mulheres e meninas que abraçaram o parque e o seu programa de recuperação. Já com 10 anos de andamento, a parceria garante, pelo menos, mais 25 de colaboração, de forma a continuar o trabalho junto de cientistas altamente qualificados e de toda a comunidade que quer ver restituído aquele que é considerado um dos locais mais ricos de África em termos de biodiversidade.
Dentro dessa comunidade, há um grupo feminino muito especial: as mulheres que saram as feridas de um local que quase desapareceu, de armas nas mãos, com um compromisso de honra face à preservação do parque, ou enquanto cientistas, a desenvolver investigações de relevo que assegurem a continuidade do mesmo; e as meninas, que representam a nova geração que está a aprender a viver numa realidade mais positiva, na qual é possível crescer com sonhos e objetivos – tudo graças a este programa regenerativo. Estas camadas mais jovens vivem em “zonas de amortecimento”, ou seja, nos locais que fazem a ponte entre o parque e as cidades vizinhas. Muitas delas, tal como grande parte das cerca de 177 mil pessoas que aí moram, não têm acesso a água ou a eletricidade, bem como a escolas e a hospitais. Vivem na pobreza e, claro, têm menos oportunidades que os rapazes na sociedade e na educação moçambicanas.
Foi devido a todos estes fatores que o PNG decidiu criar um programa educacional voltado para as questões femininas, cujo principal objetivo passa por alertar estas meninas e jovens contra o casamento precoce que, segundo o The Guardian, leva cerca de metade das moçambicanas a casar antes dos 18 anos. Ainda assim, a iniciativa não se limita a este tema, uma vez que o processo de alfabetização também é uma prioridade, bem como as visitas ao parque. No total, o programa conta já com cerca de 2,000 meninas participantes, espalhadas por 50 escolas.
Quanto às mulheres adultas envolvidas, os seus campos de ação cobrem diversas áreas. No entanto, e contra todos os estereótipos associados ao setor, é na Ciência que a sua presença mais se denota. Neste momento, é até seguro dizer que, embora as posições seniores sejam ainda lideradas pelo género oposto, há mais mulheres a entrar para o programa científico do parque do que homens. Os resultados estão à vista: o parque foi realmente repovoado, com algumas espécies a exceder os valores quantitativos antecedentes aos conflitos, e o número de caçadores ilegais diminuiu significativamente.
Veja o vídeo da reportagem que o jornal britânico The Guardian lançou sobre este assunto.