Conexão Lusófona

O “Grande Dilúvio” de Sambanhe: testemunhos das vítimas do ciclone Idai

Chimica Sambanhe, régulo — Fotografia: Telcínia dos Santos, Moçambique

Telcinia dos Santos, correspondente da Conexão Lusófona em Moçambique, foi ao terreno ouvir e sentir o que passaram os sobreviventes do ciclone Idai, em Sambanhe. Os relatos são duros, reais e sobretudo humanos.

 

No caminho para Dombe, posto administrativo do distrito de Sussundenga, no centro de Moçambique, só se ouvem relatos sobre pessoas que não ficaram para contar a sua história; o que os seus olhos viram ou o que sentiram os seus corpos arrastados pela ira das águas, que devastaram vidas, famílias, comunidades.

 

Para quem está de fora, são as 603 mortes até o momento, contabilizadas pelas autoridades, que assustam, mas, para quem está aqui, o percurso revela que algo muito desastroso passou por estes pontos do país.

 

Já não se ouvem os gritos das pessoas, mas são muitas as incertezas e a dor de quem perdeu uma família inteira e o sacrifício de uma vida, de um dia para o outro.

 

As espigas secas de milho revelam a direção dos ventos fortes que tiraram tudo, a quem já não tinha nada. Assim, foi-se o sacrifício de muitos agricultores que perderam tudo. Árvores partidas e outras arrancadas pela raiz são agora parte do cenário de Dombe.

 

Chimica Salvador Sambanhe é régulo de Sambanhe, um pequeno bairro da localidade de Matarara, no posto administrativo de Dombe. Recebeu-nos com um pedido de desculpas, por não ter cadeiras para receber qualquer visita. Na sua camisa de gola, carregava no peito um crachá que o intitula Autoridade Comunitária, uma das poucas coisas que lhe restou e que lhe garante o estatuto — além do chapéu de autoridade e do reconhecimento popular. O seu uniforme foi-se com as águas, que também lhe tiraram a casa.

 

Sambanhe, o régulo, conta que recebeu a informação na rádio, mas pensou que não fosse ser atingido.
“Ouvimos na rádio que há de vir vento, há de vir chuva forte. Aquele que fica nas zonas baixas tem que ir para zonas seguras. Nós contávamos que fosse na Beira e em outras províncias. Depois, começou aqui a chover pouco a pouco e começou a vir o vento…  veio uma chuva nunca vista, que durou três dias”.

 

“Estava sentado em casa com o meu neto, não aqui”. Conta Sambanhe, se referindo à sua casa de alvenaria que ficou totalmente destruída pela fúria das águas. Vieram-me informar: “Sr. Régulo está tudo cheio de água. Levei o meu neto, não tive tempo de levar o fardamento, nem a minha moto; não levei nada. Quando saí a água estava nos joelhos.”

 

Sambanhe, o régulo, conta que tentaram seguir para o mesmo local onde se refugiaram nas cheias de 2000. Pelo andar do tempo, sem que as chuvas parassem, disse ao neto:

“Nós já morremos. O caminho que confiávamos já está cheio de água.”

 

A água estava a perseguir pessoas. Nas casas que conhecíamos chegou a água. Eu juntei todos e disse: “nós já não temos para onde ir; só vamos fazer como aquele gafanhoto, conhece?  O gafanhoto quando chega a hora de morrer fica junto, começa a juntar. Por isso, vamos morrer juntos para o Governo, quando passar, ver que o povo de Sambanhe, localidade de Matarara, morreu junto”

 

“Aquela água vinha com paus e capim grande; com pessoas agarradas aos ramos a gritar. Não tinha maneira de as tirar, sem morrer ali”, contou o ancião de quase 80 anos, que nunca tinha visto algo parecido. “Morreram oito pessoas aqui de Sambanhe. As que vinham de longe e que a gente não conhece foram nove” disse o régulo.

 

Quando as águas baixaram, Sambanhe juntou algumas pessoas e tentou encontrar formas de socorrer os outros.“No dia seguinte, quando baixaram as águas, começamos a fazer uma lista para juntar as pessoas e arranjar canoas para socorrer as restantes, que passaram os dias de sexta e sábado com as crianças lá em cima, sem comer nada”.

 

O régulo sabia que as escolas e igrejas são os locais mais seguros em casos como este, mas, desta vez, foi diferente.

 

“Aqui na nossa escola, os professores começaram por subir nas carteiras; depois, foram para cima dos barrotes; mais tarde, a água chegou ali e tiveram que criar uma abertura nas chapas para ficar no teto. Mas a água também chegou ali. Outros morreram, crianças e adultos. Começamos a levar os que já estavam mal, com fome”.

 

Sambanhe, que também é agricultor, mostrou a sua machamba totalmente destruída e os restos de milho já em estado degradado.

 

Machamba danificada – Fotografia: Telcínia dos Santos, Moçambique

“A nossa machamba está mal; já tem areia que veio com a água. No dia 24 de dezembro completo 79 anos. Nem as pessoas mais velhas do que os meus bisavós viram esta quantidade de água. A este lado, no qual estamos, nunca tinha chegado água, mas esta chegou, relatou.

 

O medo de regressar para uma casa onde cheira morte

“Eu tinha uma casa especial de alvenaria bem construída, bem pintada. Agora, quando chegou a água, ninguém pode estar mais ali. Já não há pessoas. Para estar ali, a gente sente medo. Tem o cheiro das pessoas que morreram e a terra já se modificou. Na machamba só encontramos areia. Nem para semear dá. E a terra, não sei de onde veio essa terra, quando seca, começa a cortar e a cortar. Não sei, se quando chegar o tempo de semear, vamos produzir ou não; eu não sei”, explicou.

 

“Agora, temos o problema daqueles bichos que comem as culturas de baixo e de cima. Aquele milho é o que nós produzimos e podíamos tirar no mês de março até abril. Agora, assim não tem maneira. Está a cheirar mal, está podre aquilo. Porque o vento veio na altura de estender o milho no chão e, depois, veio água. Não temos maneira”, acrescentou.

“Era só sair assim, casa celeiro, cabritos era só deixar tudo. Algumas pessoas tinham 60 cabritos, bois… deste lado, ninguém tem boi, nem galinha, nem nada”, constatou.

 

“Os meus dias de viver estão longe, é verdade. O meu espírito, com o meu Deus, me abençoou muito. Passei muito mal”, relembrou.

 

Sambanhe lamenta com dor o facto de ter perdido o seu fiel companheiro. Um aparelho de rádio que o dava algum alento ao voltar para casa todos os dias. Ensopado de lama, já não produz qualquer som.

 

Aquele aparelho não vai funcionar mais

“Está a ver aquele aparelho? Está a ver a motorizada? Tudo estava dentro de casa. Depois começou a entrar aquela água com areia. Tive que levar a enxada para desenterrar tudo”, afirmou.

 

“É aqui, na minha casa, tenho que viver aqui, não há outra maneira. Não posso pensar na maneira que estava a viver ali em casa, porque senão fico magrinho, fico doente”, relatou, ao lado de uma nova construção precária feita de estacas e da tenda que lhe foi oferecida para que não ficasse ao relento.

 

“Pelas 19:00 horas, estava a descansar com música e agora estou aqui; é triste. Aquele aparelho não vai funcionar mais. Nós aqui estamos a sofrer bem mesmo”, concluiu.

 

Para a foto da nossa reportagem, Sambanhe pede para trocar de camisa e colocar uma que lhe deixe com melhor aspeto e sorri quando perguntamos se queria tirar com a esposa. Disse que não.

 

 

Quatro dias em cima de uma árvore, sem ter o que comer

Manuel Chingono não se lembra da idade, mas os cabelos brancos e o rosto cansado denunciam a idade avançada. Também vive em Sambanhe. Encontramo-lo sentado na sombra de uma árvore, onde pensativo observava o que restou do celeiro de milho.

 

Na primeira pessoa e em língua local, conta o que viveu durante quatro dias. Passou-os em cima de uma árvore, para poder sobreviver.

 

Chingono conta que recebeu o aviso que alertava para a ocorrência de ventania e chuva forte, mas não se alarmou. Alegou que tinha um sítio confiado, que desde que foi nascido, nas maiores tempestades que tinha presenciado, a água nunca chegara àquele local: uma igreja católica.

 

“No primeiro dia ficamos na igreja, no segundo dia a igreja ficou completamente coberta pelas águas e tive que subir numa árvore de mangueira”, contou o ancião, que não sabe dizer de onde veio a força para subir  a uma árvore com aquela idade.

 

Alguns que tentaram subir na mesma mangueira não tiveram a mesma sorte que Manuel e caíram.

 

“Nunca vi este tipo de água, desde que saí de Zimbabwe até Sofala, a matar pessoas; nunca vi. Nem os meus pais, nem os meus avós nunca me falaram desta água. Só falavam do Noa da Bíblia, mas eu nunca vi”, garantiu.

 

“Foi Xilhamalisso (Insólito), não tinha como salvar aquelas pessoas”, concluiu.

 

 

Enterramos mortos que não são nossos

Placedes Samuel é mãe de uma menina de sete anos, que estuda num internato religioso. Trabalha como cozinheira na casa das irmãs da Missão de Dombe.

 

Quando as águas baixaram, Placedes percorreu quilómetros a pé à procura da sua filha. Pelo caminho, ouvia relatos de que o internato já não existia, tinha ficado submerso pelas águas e não se sabia do paradeiro de nenhuma criança, o que aumentou a sua angústia.

 

Ao chegar na Missão, não havia passagem. Somente três dias depois é que conseguiu algum acesso, com lama até à cintura. Placedes contou que seguiu por aquele caminho e felizmente encontrou a sua filha com vida, bem como as outras crianças. Tinham sido retiradas para um lugar seguro, na noite de tempestade.

 

Com um olhar intenso, ainda se emociona e, por alguns segundos, fica em estado de choque quando conta o que viu. “Nunca pensamos ver o que vimos, parece história”, repete inúmeras vezes, enquanto relembra os três dias de chuva intensa.

 

“Vi muitos corpos a flutuarem nas águas; pessoas ainda vivas a serem arrastadas, acenando para se despedirem. Algumas pessoas levavam folhas de bananeira para tentar socorrer as vítimas em vão; as canoas não serviam para nada, também eram arrastadas. Eram arrastados alguns que tentavam salvar os outros”, contou Placedes.

 

Placedes recusa-se a falar das crianças que perderam a vida arrastadas. “De crianças não se fala”, afirmou.

“Ficamos por três dias no meio das águas, que vinham de todos os lados. Por cima das casas, havia muita gente. Ficaram três dias em cima de árvores e telhados; alguns não resistiram e caíram; outros jogaram-se nas águas, antecipando a sua morte”, explicou.

 

“O que só víamos na televisão, e em outras partes do mundo, vimos aqui em Dombe e com os nossos próprios olhos. Se alguém me tivesse contado eu não teria acreditado, mas eu vi”, desabafou.

 

“Em algumas localidades próximas, não existiam enterros de uma só pessoa; eram seis a nove pessoas, alguns desconhecidos”, explicou.

 

“Não se chora. Chorar o que?” Questionou.

 

Placedes contou que encontrou uma mãe com o seu bebé ao colo que vinha de Máquina, não pelos seus pés, nem por um veículo. “Chegou a Dombe arrastada pelas águas com o filho ao colo, tentando agarrar-se a qualquer coisa que encontrava pelo caminho”, confidenciou.

 

Ao longo dos dias, iam aparecendo corpos próximos a residências. Placedes contou que foram informados para os enterrar, para que não apodrecessem. “Encontrávamos a pessoa morta e enterrávamos. Não sabíamos de onde vinha, mas as pessoas não tinham maneira”, concluiu.

 

Estes, são apenas alguns dos milhares de relatos que podem ser contados por pessoas que sofreram a fúria da natureza e viram a morte passar-lhes à frente, sem nada poder fazer.

 

O ciclone Idai, que afetou também o Maláui e o Zimbabué, provocou pelo menos 603 mortos em Moçambique e afetou mais de 1,5 milhões de pessoas, segundo dados das autoridades moçambicanas.

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