A História tem a maior memória e, fazendo uso desta, tudo se relata e reconstrói. Por isso, viajemos até São Tomé e Príncipe e façamos uma paragem pelo ano de 1953. Esta data ajuda a desmistificar a natureza do colonialismo português; demonstra, sobretudo, até que extremos de violência este domínio poderia ir, ceifando vítimas incontáveis, desmantelando famílias inteiras e sequestrando, sucessivamente, a liberdade das populações subjugadas.
Por volta da segunda metade do século XX, numa altura em que a exploração das “colónias portuguesas” era uma constante, São Tomé e Príncipe sentiu na pele um profundo genocídio. Este acontecimento ficou registado na História como o Massacre de Batepá, também intitulado como a Guerra da Trindade. Existem dimensões deste episódio que, até hoje, continuam silenciadas na narrativa pública, tanto em Portugal como em São Tomé e Príncipe. Porquê? – interrogamo-nos. Para perpetuar uma aliança bilateral, construída sobre os escombros do passado colonialista — respondemos.
Segundo Inês Nascimento Rodrigues, investigadora do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, o Massacre de Batepá, em Portugal, é praticamente desconhecido, parecendo sinalizar “uma espécie de recusa em discutir um episódio que perturba a grande narrativa nacional pós-imperialista de um colonialismo mais benigno e mais pacífico do que os outros”, rejeitando a ideia de que existem formas de controlo violentas.
Passaram-se mais de 60 anos desde esta fatídica data. Tudo foi desencadeado graças às relações laborais do sistema colonial, nas roças de cacau e café de São Tomé e Príncipe. A tentativa de forçar a população nativa a trabalhar como serviçais assalariados culminou no Massacre de Batepá. Hoje, as vítimas são adjetivadas de heroicas, e, segundo Inês Nascimento Rodrigues, este assinalamento serve para relembrar a São Tomé e Príncipe a “identidade coletiva partilhada” de outrora, enfatizando a individualidade nacional. No entanto, fica a ressalva de que a população santomense massacrada nunca quis vestir a capa de uma super-heroína que, no final de contas, acabou por perder a guerra para a injustiça.
A força que semeou o medo
Algures durante a década de 40, foi nomeado um novo administrador para a província ultramarina de São Tomé e Príncipe. Surge então na História a figura do tenente-coronel Carlos de Sousa Gorgulho. Este homem foi caracterizado por António de Almeida, um inspetor superior da administração colonial portuguesa, como um indivíduo com “soberbas aptidões, virtudes e competência”, reunindo todas as qualidades para enfrentar o cargo de governador-geral. “Inteligente, estudioso e de surpreende dinamismo, desconhece a fadiga física ou intelectual”, encontrando-se apto para fiscalizar os campos de produção das colónias, as obras de engenharia e para escrever diversos relatórios e despachos que informassem o governo português.
Carlos de Sousa Gorgulho chega até São Tomé e Príncipe com uma tarefa: aumentar a produção das roças de cacau e de café — e, convenhamos, não poupou esforços para atingir o objetivo. Este homem, devotado nacionalista, mergulhou a colónia insular africana num profundo e vasto programa de construções e melhoramentos públicos. Consequentemente, como se impunha a necessidade de aumentar a exploração económica dos principais produtos santomenses, Gorgulho precisava de angariar mão de obra. Ora, como a maioria da população nativa resistiu ao trabalho precário, o governador-geral recorreu à força para conseguir angariar os tão desejados serviçais assalariados. Já que São Tomé e Príncipe se recusava a trabalhar de forma precária, a solução seria apostar em mão de obra oriunda de outras colónias, nomeadamente de Cabo Verde, Moçambique e Angola.
Segundo a investigadora Inês Nascimento Rodrigues, dentro da ilha santomense proliferava uma certa discriminação e hierarquização entre os forros — descendentes de escravos alforriados (livres) — e os trabalhadores contratados para trabalharem nas roças, oriundos de outras províncias ultramarinas. Além disso, os contratados cabo-verdianos estavam ligeiramente acima dos trabalhadores angolanos e moçambicanos, que haviam sido empregados pelo mesmo motivo. Estes trabalhadores foram para São Tomé numa espécie de “regime de escravatura, mascarado de contrato“. Foi-lhes prometido, por Gorgulho, trabalho remunerado temporário e qualidade de vida. No entanto, estes chegaram à ilha e depararam-se com “situações muito precárias“, estando sob a alçada da forte marginalização que se fazia sentir, tanto por parte dos colonizadores e administradores das roças, como por parte dos nativos.
A população estava ciente, já há algum tempo, das várias tentativas de Carlos Gorgulho em arrastar massivamente os santomenses para as roças coloniais. Sabiam-se e falavam-se das várias rusgas noturnas que eram realizadas, com a finalidade de sequestrar mão de obra. Contudo, o verdadeiro “descontentamento” dos nativos deu-se após a publicação de uma entrevista dada pelo diretor da Curadoria Geral dos Serviçais e Indígenas, Franco Rodrigues, ao jornal A Voz de São Tomé, em janeiro de 1953.
Segundo o historiador e professor Fernando Rosas, a partilha feita por Franco Rodrigues veio expor, em praça pública, os objetivos futuros do tal Plano de Fomento para aquela província. Ora, uma vez que os cabo-verdianos se fixaram na ilha, para ajudarem a explorar as roças de café e de cacau, estes deveriam alcançar um estatuto social similar ao dos forros. Falava-se de um “nivelamento” de “todas as populações para que, no futuro, os grupos populacionais diferentes entrassem em contacto e criassem um produto único, não imposto, mas natural. É aqui que surge a imposição do Estatuto do Indígena: termo utilizado para definir os direitos, mas, sobretudo, os deveres dos indígenas das colónias portuguesas.
O descontentamento santomense
O objetivo de Carlos Gorgulho passava por obrigar a população nativa ao trabalho compelido, nas obras públicas que este pretendia promover. Para isso, precisava de destruir o estatuto de relativo privilégio que os forros detinham. Ao reduzir-lhes o estatuto social ao nível do “indígenato”, conseguia forçá-los a cumprir a legislação e, por conseguinte, satisfazia a sua vontade. Consequentemente, a população foi distinguida em nativos-forros, caracterizados como indivíduos que só relutantemente trabalhavam por conta de outrem, porque eram obrigados a satisfazer aquilo lhes impõe a lei; os nativos-angolares, indivíduos que se dedicavam à pesca, que trabalhavam como barqueiros em muitas propriedades agrícolas; os nativos-tongas, indivíduos que nasciam nas roças, habituados desde pequenos a este tipo de lavoura, trabalhando maioritariamente por conta de outrem; e, finalmente, os angolanos, moçambicanos e cabo-verdianos, catalogados como indivíduos que prestavam serviços nas propriedades agrícolas, mediante um contrato de trabalho temporário.
Segundo o investigador Augusto Nascimento, para a população nativa, trabalhar nas roças significava um “nivelamento” relativamente aos restantes trabalhadores africanos, prevalecendo a sensação de uma certa “desqualificação social” que os santomenses repudiavam. Consequentemente, o sentimento de revolta e contestação começava a agudizar-se. Na tentativa de manter a população controlada, Gorgulho desmente esta uniformização social. No entanto, o governador-geral arma os restantes trabalhadores das roças, na tentativa de os utilizar como executores do governo colonial, virando-os contra os forros. Desta forma, nas palavras do historiador Fernando Rosas, é iniciada uma verdadeira “caça ao preto” nativo de São Tomé.
A tortura que ceifou São Tomé
“O império não se sujeita às exigências dos nativos“, referiu Gorgulho e, no rescaldo desta afirmação, ficaram as lembranças do Massacre de Batepá.
A partir de 3 de fevereiro, e pelo menos até ao dia 8, os arredores e a vila da Trindade foram praticamente destruídos. Enquanto os colonos brancos e os seguidores de Gorgulho “caçavam” nativos, o governador-geral ordenou a prisão dos funcionários públicos negros, destituindo-os do cargo. Os que ousaram permanecer nos seus postos de trabalho foram coagidos, sob a ameaça de prisão ou deportação, a assinar uma declaração que repudiava a revolta nativa e que os obrigava a denunciarem qualquer crítica, bem como”atos ou predisposições a atos de rebelião ou a agressões contra os poderes constituídos”, referiu o historiador santomense Carlos Espírito Santo, no seu livro “A Guerra da Trindade“.
Ao longo daqueles dias, centenas de pessoas foram encarceradas na Cadeia Civil da ilha, na Fortaleza de São Sebastião e em locais de detenção improvisados, sem as mínimas condições e completamente lotados. Muitas das vítimas foram deportadas para a ilha do Príncipe; outras, levadas para a paria de Fernão Dias, que albergava uma espécie de campo de concentração. Neste último local, os nativos eram obrigados a transportar grandes pesos, enquanto eram acorrentados e chicoteados. Aqueles que sucumbiam, vítimas do esforço físico e tortura, eram lançados ao mar, sem qualquer registo de óbito. Até hoje, nunca foi possível apurar, com rigor, o número de vítimas mortais do massacre. Sabe-se apenas que nos registos santomenses foram contabilizadas 1032 mortes; contudo, nos registos portugueses da época, foram apenas registadas uma ou duas centenas de vítimas.
Alguns historiadores admitem que o Massacre de Batepá provocou um número indeterminado de mortes, já que este não resultou apenas de uma “simples explosão”, culminando num “processo contínuo de violência”. Existem relatos de mulheres e de crianças violadas; de choques elétricos e de pancadaria pesada; de celas de prisões completamente lotadas, sem as mínimas condições; de casas incendiadas e de património destruído; relata-se, sobretudo, a perda de liberdade e o abate generalizado da dignidade.
Em todas as prisões, o regime alimentar dos presos baseava-se em peixe salgado cru, olhos e tripas de vaca e fubá (farinha de milho ou de arroz) com bichos. A água ingerida era a mesma que era usada para lavar as centenas de tinas de alimentos. Como as condições eram tão miseráveis, não tardaram a surgir diversas doenças que ceifaram a visão e a audição a muitas das vítimas; outras tiveram de ser mutiladas (ou isso ou a morte); sendo que, até hoje, existem nativos com sequelas psicológicas irreparáveis.
A remediação do problema
São Tomé e Príncipe ficou mergulhado numa tortura profunda, enquanto o número de órfãos subia a cada dia. Com o intuito de parar o massacre, a elite santomense escreve ao ministro do Ultramar da época, Sarmento Rodrigues, colocando-o a par de tudo o que estava a acontecer no seu país. Outros elementos nativos tentaram falar com Marcelo Caetano e com o próprio António Oliveira de Salazar, chefe de Estado português.
Não existem muitos documentos no Arquivo Oliveira Salazar sobre o Massacre de Batepá, mas toda a gente sabia o que estava a acontecer em São Tomé e Príncipe. Os telegramas de Carlos Gorgulho nunca relataram com veracidade o que estava a acontecer na província ultramariana. O governador-geral referiu apenas que a população nativa montou um “movimento comunista de alguma envergadura”, com a ajuda de uma rede internacional. Por isso, nas suas palavras, era necessário proceder a “operações de limpeza”, que poderiam ser morosas, já que os “rebeldes” se escondiam numa “floresta densa”, referindo que não precisava de reforços, porque a população branca ajudou “em massa” a acalmar o “ódio aos brancos”.
Apesar da gritante diferença de munições, uma vez que os nativos combatiam com pequenas facas e lanças (azagaias) e os brancos usavam armas de fogo, Gorgulho teve de admitir ao Conselho do Ultramar que ainda não tinha dominado “completamente a revolta”, dando conta de algumas mortes e baixas que se sucederam. Além disso, relatou que se tinha originado um “movimento muito extenso”, com “ramificações”, encabeçado por alguns funcionários públicos santomenses que não mereciam “confiança alguma”, tidos como apologistas do “separatismo”. Por isso, dispensou-os, substituindo-os por trabalhadores moçambicanos, angolanos e cabo-verdianos, que trabalhavam nas roças e que haviam sido recrutados como militares e armados por ele.
Nas suas últimas declarações, Gorgulho lamentava que São Tomé e Príncipe tivesse sido a colónia onde se quebrou “o sossego que reina em todo o território Ultramarino“, garantindo que a “incompreensão e a ingratidão” da população era uma constante. Além disso, os nativos dificultavam a aceitação dos bons conselhos e apressavam-se a seguir os maus exemplos e caminhos.
Os relatos dos episódios que tinham tomado São Tomé e Príncipe ficavam cada vez mais difíceis de controlar. Surge então uma figura primordial: Manuel João da Palma Carlos, o advogado de presos políticos que aceitou defender as vítimas encarceradas de São Tomé, recolhendo e tornando públicos depoimentos e encorajando a apresentação de queixas contra a governação ultramarina.
O advogado pisou em São Tomé a 25 de março de 1953, pouco mais de um mês após o massacre. Chegou numa altura em que estava a ser realizado o apuramento dos responsáveis pelo movimento “insidioso”, “separatista” e “comunista”. Os presos eram obrigados a “confessar” que queriam matar o governador da ilha e que desejavam degolar os colonos europeus e distribuir as mulheres brancas pelos nativos. Além disso, precisavam de admitir que tinham armas e munições e que aguardavam um navio que apoiaria a tomada de São Tomé ao Ultramar.
Com a chegada do advogado Palma Carlos, e porque o anticolonialismo começava a ganhar projeção no contexto internacional, as forças coloniais portuguesas foram obrigadas a ceder — de certa forma. Foram libertados alguns presos políticos, que acabaram por ser deportados e classificados de “indesejáveis”. Além disso, Carlos Gorgulho foi chamado a Lisboa e acabou por ser destituído do cargo de governador-geral de São Tomé e Príncipe. O Conselho ultramarino considerou que era mais conveniente que o tenente-coronel se afastasse “por sua livre determinação“, ajustando os pormenores da destituição e facilitando a sua execução. No entanto, mesmo depois de toda a calamidade perpetuada, Gorgulho acabou por ser louvado, ainda durante o ano de 1953, no Diário do Governo, pelos “relevantes serviços”, “tenacidade e esforço incansável” enquanto governador de São Tomé.
Um ano depois do Massacre de Batepá, apelidado por muitas das vítimas como o “Massacre do Mata-pá!“, Carlos Gorgulho recebeu um louvor de Salazar. Na Ordem do Exército de 28 de fevereiro, Sarmento Rodrigues -8publicou um texto que elogiava a “bravura” e as “notáveis qualidades de iniciativa de forças para combater os sediciosos”. Segundo o advogado Palma Carlos, o governador-geral foi demitido com injustificável louvor.
Os Mártires da Liberdade
De acordo com a investigadora Inês Nascimento Rodrigues, “os acontecimentos iniciados (em São Tomé), a 3 de fevereiro de 1953, ocorreram fora de um contexto de luta armada, ao contrário do que se passou na generalidade das restantes colónias portuguesas” que viveram massacres como Pindjiguiti (Guiné-Bissau, 1959) ou Mueda e Wiriyamu (Moçambique, 1960 e 1972, respetivamente)”.
Graças a este genocídio da população nativa, comemora-se, até hoje, a 3 de fevereiro, o feriado nacional que evoca aqueles que ficaram apelidados de mártires: o Dia dos Mártires da Liberdade. Além disso, o Massacre de Batepá permanece na memória dos que foram silenciados; dos que tiveram coragem e o relataram em livros e em publicações académicas; e da geração atual que continua a reclamar a liberdade, no seu sentido mais amplo e abrangente.
Até hoje, grande parte da população portuguesa não tem noção da amplitude deste episódio. Para Inês Nascimento Rodrigues deve-se, sobretudo, porque este não decorreu “no contexto das guerras coloniais e de libertação. Por ser anterior, acaba por passar um pouco mais despercebido”. No entanto, como a História não esquece e vai registando os espetros da dor nas suas intermináveis páginas, o que é considerado desconhecido acaba por emergir.
Após 65 anos, São Tomé e Príncipe recebeu, em 2018, a primeira visita de um chefe de Estado português. Marcelo Rebelo de Sousa levou consigo um ramo de flores e um minuto de silêncio, prestando homenagem a todos os que lutaram pela liberdade e, em particular, a todos os que morreram por ela. Assumiu as responsabilidades pelo que aconteceu em fevereiro de 1953, mas não pediu desculpa — pelo menos, de forma direta. Classificou o Massacre de Batepá de “intolerável e condenável”, mesmo que este tenha acontecido em tempos idos; noutras batalhas.
O tempo já consumiu mais de seis décadas de acontecimentos póstumos, mas o sentido de justiça pleno parece que nunca abraçou São Tomé e Príncipe. Continuam a existir mortes por apurar e informações por divulgar, por parte do governo português. No ar, paira o sentimento de saber mais; de saber tudo — que, devido às relações diplomáticas bilaterais, pode nunca vir a ser desnudado. Todavia, o Estado insular avançou e dedica, todos os anos, um dia aos que morreram e lutaram valentemente pela justiça. Ficou a dor e esta ninguém esquecerá; está plantada na gente daquela terra, relembrando-a de que a liberdade nunca mais poderá ser sequestrada.