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Mr. Football: a classe e a elegância de um craque

Hoje em dia, todos os que acompanham ou não as peripécias do futebol, acabamos tomando forçosamente conhecimento não apenas da trajetória profissional dos grandes craques, mas também das peripécias e fofocas envolvendo a vida particular de cada um deles. A midia e as redes sociais se encarregam de nos impingir diariamente toneladas de informações sobre o quotidiano desses ilustres personagens, transformados em estrelas de um interminável showbizz de escala planetária. Mas nem sempre foi assim, naturalmente, a despeito da sempiterna curiosidade dos torcedores. Claro que em tempos idos as aventuras extracampo de Garrincha, envolvendo sua rumorosa separação da mulher e de suas nove filhas, para juntar-se em 1968 com a cantora Elsa Soares, tiveram imensa repercussão em todo o país. E falando de Mané Garrincha, o Anjo de Pernas Tortas, a Alegria do Povo, companheiro dos bons tempos no Botafogo e na Seleção de Nilton Santos, Zagalo e Didi, e cujo ocaso melancólico afligiu a todos nós, valeria lembrar um trecho de uma crônica de Drummond, publicada no dia seguinte ao de seu triste fim:

“Se há um Deus que regula o futebol, esse Deus é sobretudo irônico e farsante, e Garrincha foi um de seus delegados incumbidos de zombar de tudo e de todos, nos estádios. Mas, como é também um Deus cruel, tirou do estonteante Garrincha a faculdade de perceber sua condição de agente divino. Foi um pobre e pequeno mortal que ajudou um país inteiro a sublimar suas tristezas. O pior é que as tristezas voltam, e não há outro Garrincha disponível. Precisa-se de um novo, que nos alimente o sonho.”

Mas o nosso personagem de hoje é outro, como já disse. Aquele que antes de Garrincha já havia protagonizado também um escândalo social nada desprezível na sociedade conservadora do Rio daquela época, ao separar-se da primeira mulher e dos filhos, para unir-se a Guiomar, a bela mulata Guiomar, assistente de Ary Barroso num programa de rádio por ele apresentado. A partir de então, a mulher passou a ser quase tão conhecida e comentada quanto o marido, cuja vida pessoal e profissional ela assumiu com gosto e competência. E foram tão unidos e felizes, que ela não suportou a morte de Didi, vindo a falecer menos de dois meses mais tarde, em 1981.

Didi nasceu em Campos, no Estado do Rio de Janeiro, em outubro de 1928. Um dos maiores craques do futebol mundial de todos os tempos, criador da irrepetível folha seca, colecionador de títulos, jogador do Fluminense, Botafogo e Real Madrid, campeão Pan-Americano, Bi-campeão Mundial (58 e 62). Foi técnico do Sporting Cristal, do Peru, e da Seleção peruana à Copa de 70, no México, técnico ainda do River Plate de Buenos Aires e do Fenerbahç, da Turquia, e finalmente do Fluminense e do Botafogo.

Minha breve (mas para mim, inesquecível) estória com Didi começa em 1970, em Buenos Aires, onde eu vivia há mais de dois anos, exercendo o cargo de Cônsul-Adjunto do Brasil, e de onde viajei de férias para o México para assistir à Copa do Mundo, numa das experiências mais ricas e excitantes de minha vida até então. Na época, às voltas com minhas filmagens em Super-8 (veja matéria neste blog intitulada Nos tempos do Super-8), acabei realizando um longa-metragem sobre o México e a Copa, no qual aparece a figura de Didi no momento em que se executava o Hino Nacional Brasileiro, momentos antes do início de nossa partida contra a Seleção peruana. Confesso que não pude deixar de imaginar o que passaria naquele instante pela cabeça de nosso Bi-Campeão…

Meses mais tarde, aparece o próprio Didi no Consulado do Brasil em Buenos Aires, para tratar dos papéis de sua transferência para a Argentina, contratado então pelo River Plate, uma das equipes mais tradicionais da Argentina. Tivemos então uma boa e longa conversa, a primeira de muitas que voltaríamos a repetir depois, inclusive em minha casa. E quanto mais o conhecia, mais admirava aquela figura nobre, elegante, sóbria, educada, consciente de seu valor, cuja contratação profissional provocou de início uma enxurrada de debates apaixonados na midia e entre os torcedores locais. Afinal, tratava-se de um técnico brasileiro, negro (!), altivo, contratado a peso de ouro, que exigira ademais carta branca para comandar um time que dispunha de dinheiro e de um imenso plantel, mas que não andava nada bem nas últimas temporadas do campeonato argentino. E esse brasileiro atrevido decidiu realizar uma profunda mudança na equipe, começando por reduzir a menos da metade o grupo de mais de quarenta jogadores do clube, promovendo a titular vários jovens das categorias de base.

O efeito dessa mudança ousada e polêmica foi aos poucos aparecendo. E o placar médio dos jogos locais, que não ultrapassava um ou dois gols, começou a engordar com a decisiva contribuição dos resultados de 4×2, 5×3, 5×4 dos jogos do River. E o mais importante: a midia e os torcedores começaram a perceber a mudança na qualidade técnica desses jogos, muito mais soltos e mais vistosos, passando então a referir-se sempre ao jogo bonito (em português, mesmo) imposto por Didi. Apesar do sucesso, nosso amigo permaneceu apenas um ano em Buenos Aires (1971), partindo depois para a Turquia, contratado pelo Fenerbahç. É certo que não foi campeão com o River naquele ano, mas deixou sua marca indelével no futebol argentino.

É claro que em minhas conversas privadas com Didi, tratava sempre de explorá-lo ao máximo para satisfazer minha curiosidade a respeito dos bastidores da Seleção canarinho na Suécia e no Chile, da veracidade por exemplo de algumas estórias que circulavam sobre a imcompetência técnica de Feola, treinador em 58, e sua oposição à escalação de Garrincha, a da conversa decisiva dele – Didi – e Nilton Santos, com o Chefe da Delegação, Paulo Machado de Carvalho, sobre esse episódio. Mas o que me chamou mesmo atenção foi quando, certa vez, num papo descontraído em meu apartamento, perguntei-lhe sem meias palavras: excetuando você, qual o maior jogador de futebol que já viu em ação? E ele, prontamente: Nilton Santos! No primeiro momento fiquei espantado por não receber a resposta que me parecia óbvia, mas logo me dei conta de que para Didi, talvez Pelé fosse ainda de certo modo aquele menino de 17 anos de 1958, ou seja, de uma geração posterior à dele e de seu amigo Nilton Santos. Embora a essas alturas, 1971, Pelé já fosse um Tri-Campeão Mundial e considerado urbi et orbi o Atleta do Século…

Concluindo essas divagações: um belo dia, em Genebra, em 1972, para onde eu fora transferido de Buenos Aires, recebo um chamado telefônico da recepcionista da Delegação do Brasil junto aos Organismos Internacionais, onde eu estava lotado, avisando-me que se encontrava na portaria um senhor brasileiro, chamado Valdir Pereira, que procurava por mim. Como? O Didi está aí? Mande entrar, por favor! Fiquei super contente com a visita, conversamos bastante e saímos para almoçar, levando de penetra o meu amigo e colega João Gualberto, que não queria por nada perder aquela chance de estar pessoalmente com o grande craque. Foi então que fiquei ciente de que Didi estava seguindo para a Turquia contratado pelo Fenerbahç e que ele e Guiomar haviam decidido matricular a filha Rebeca em um colégio interno em Neuchâtel, pequena cidade suíça perto de Lausanne, (terra natal, diga-se de passagem, de Jean Piaget, ou seja, de um dos pensadores mais importantes do século).

Passados uns dias, vou a um hotel em Genebra ao encontro de Guiomar e Rebeca, que haviam chegado para as providências da matrícula, e reiterar às duas o que já havia dito ao marido e ao pai quando de nosso encontro recente, ou seja, que com muito prazer atenderia ao pedido da família para tornar-me o responsável oficial pela guarda de Rebeca na Suíça. Dois anos depois, fui removido para Brasília, enquanto Didi permanecia na Turquia até 75, quando retornou ao Rio para treinar o Fluminense e depois o Botafogo.

Minha grande pena é que as voltas do destino me tenham impedido de tornar a encontrar o meu bom amigo de Buenos Aires, o inigualável Mr. Football, que em 2001 dependurou as chuteiras da vida, aos 72 anos.

 

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