Decidi passar para o papel, uma pergunta com que me entretenho há já algum tempo, no momento em que a incerteza é a única certeza da vida política portuguesa.
A pergunta coloca-se nos seguintes termos: qual o tipo de linguagem que predomina, nas reuniões à porta fechada, que ocorreram em Portugal desde 4 de Outubro?
Tendo em conta a personalidade que atribuímos a algumas personalidades políticas; tendo em conta o facto de que se conhecem dos trabalhos parlamentares, dos corredores do poder e não só, como serão as conversas entre eles?
Imagina o leitor a linguagem usada entre Cavaco Silva e Pedro Passos Coelho na audiência de dia 6 de Outubro?
Haverá lugar para um:
– E essas eleições, Pedro?
Ou, tendo em conta o formalismo omnipresente de Cavaco, digo eu, poderíamos ouvir um:
– Quem diria, Dr. Pedro Passos Coelho…quem diria?
Voltando-me para a Esquerda, concebe a leitora, na sua mente, como seria o início de conversa entre Jerónimo de Sousa e Catarina Martins?
Seria algo como:
– Jerónimo, bons olhos o vejam! – atira uma Catarina confiante, quebrando o gelo do diálogo à esquerda.
O melhor será não abusar, não abrir em demasia os olhos e o sorriso de palco, ou Jerónimo poderá detectar alguma fina ironia inflamada pela ultrapassagem da CDU pelo Bloco… jogará, assim, Catarina pelo seguro e teremos um:
– Hã ? E ontem? Aquilo é que foi, a trepa que demos à Direita!
Como responderá Jerónimo? Homem atento, com experiência, baixará ele a guarda marxista? Eu acho que não, apesar de o achar um “bacano” e, arrisco:
– Pois… mas é importante, portanto, vermos como fica arrumada a mobília no Rato…
Quando nestas linhas entra António Costa, imagino a visita a Jerónimo de Sousa na Soeiro Pereira Gomes.
Mais: sabendo da “balcanização” da Esquerda (pelo menos até ao passado dia 4 de Outubro) as palavras, depois das formalidades da chegada, soarão a “processo de paz na malograda Jugoslávia?”
Haverá lugar a “Camarada”? Como aborda António Costa o resultado das eleições, o Tratado Orçamental, a NATO ao seu anfitrião?
– Então, Secretário-Geral Jerónimo de Sousa, parece que o “Muro” à Esquerda caiu mesmo – dirá um eleitoralmente (algo) apertado António Costa.
– Vamos lá ver, vamos lá ver…não fomos nós que o construímos – reage Jerónimo, cauteloso com as entrelinhas e a “não-poucochinha” derrota socialista.
Mas agora o tempo é de união à Esquerda e o que lá vai, lá vai.
E enquanto estes diálogos decorrem nestes lugares de política, a vista alcança o quotidiano de Portugal?
Chegará ainda àqueles que, em Angola, tão próxima, lutam com a fome e a morte, pelos mais fundamentais direitos? Àqueles que fazem do seu sacrifício pessoal, um exemplo para todos? Os que emprestam decidida e decisivamente a sua Voz, para que as lutas fundamentais dos povos, não se percam em conversas bem menos soltas e bem mais polidas que ocorrem nos corredores do poder.
Imagine a leitora, concebe o leitor destas linhas, a conversa entre o Professor e Presidente Cavaco Silva e os Doutores Passos, Portas, Machete sobre o que se passa em Angola?
Ou a vista da sala não vai além do Tejo e as paredes abafam o som da solidariedade?
Imagina?