(Imagem: Reprodução de quadro de Abé)
Porque é que se fala português em Timor-Leste?
Uma questão aparentemente fácil de encontrar resposta, mas ao abrir um Manual de Ciências Políticas e Relações Internacionais, as teorias apontam imensas possibilidades. O que por sua vez, constitui uma importância específica, valor e significado no campo técnico, para tentar entender fenómenos geopolíticos e culturais, mas como a vida não só é técnica, talvez uma experiência vivida e sentida com a realidade do imaginário timorense de outrora, possa dar uma resposta mais real, no sentido de uma realidade vivida, habitualmente revestida em discurso como senso comum, pelo espectro académico.
Já houve, hipoteticamente, quem colocasse em dúvida a instituição da Língua Portuguesa e o seu futuro, no uso prático, na qualidade de património imaterial estabelecido em Timor-Leste, por motivos óbvios, e, quiçá, essa questão ainda habite em certos espíritos céticos no espaço lusófono.
O que é fato é que a Língua Portuguesa, para todos os efeitos, é uma língua oficial em Timor-Leste instituída em órgãos oficiais, estipulada e consagrada com legitimidade na Constituição Timorense como Língua Oficial. E de novo se pergunta, porquê? A Língua Inglesa, em termos geopolíticos, especificamente falando no caso de Timor-Leste, representa um papel crucial para melhor servir seus interesses, primeiro a sul do território, está uma grande potência regional, a gigante Austrália, e segundo, do ponto de vista macrorregional asiático, é a língua de comércio e de comunicação entre parceiros ecónomicos, políticos e os demais. Enfim é sabido por todos, que é uma língua que representa uma importância grande em todas as instâncias internacionais. Então porquê a Língua Portuguesa?
Só para nos situarmos na narrativa, tudo começou no Séc. XVI quando os navegadores portugueses abarcaram no território, por motivos comerciais, uma vez que entre chineses, malaios e indianos se falava muito do sândalo, um produto comercial importante para a época e ainda continua a sê-lo. Não entrando em especificidades historiográficas sobre a questão, a partir daí tudo mudou o destino entre duas realidades distintas e bem distantes uma da outra, que ao longo dos tempos foram convivendo em termos diferentes, obviamente, justificados por motivações específicas para o contexto daquela altura. Que apesar das diferenças também encontraram semelhanças. Estamos a falar de duas ancestralidades com moldes estéticos, éticos, religiosos e conceptuais bem distintos, porém transversais, em graus mais profundos de essência. Nasceu então um espaço para uma convivência entre duas culturas – a ancestralidade maubere e a ancestralidade lusitana – a última de cariz europeu, encarregue de dois objetivos, levar a mensagem de Cristo para territórios desconhecidos e estabelecer trocas comerciais e ‘logo se vê’ (é importante recordar que no início da era dos descobrimentos portugueses na ótica historiográfica, ainda não havia pretensões colonialistas, os fins eram mais comerciais e missionários). A segunda, mais austronésia e oriental, achou estranho por serem bem distintos dos chineses. Dois mundos estranhos, e usando o estrangeirismo, ambas estavam completamente ‘lost in translation’. Do desconhecido abriu-se a possibilidade para o conhecido, que mais adiante nasceu o espaço para a convivência entre duas culturas, que entre conflitos e consensos, uma sobrepondo-se à outra se foram amando e odiando, até que finalmente, da semente plantada nos tempos primórdios, deu origem a uma fruta que se chama – Língua Portuguesa.
Era uma espécie de latim para os timorenses, da mesma forma que o latim esteve para os europeus. Como é estranha e fascinante a difusão cultural na existência antropológica. De ‘bárbaros lusitanos’ passaram a ‘luso-greco-latino-cristãos’ e do outro lado, de ‘incivilizados e gentios’ passaram a ‘maubero-asio-lusófonos’.
Este espaço de convivência durou quatro séculos e meio – 450 anos – de presença portuguesa em Timor-Leste, até que do lado lusitano as coisas começaram a degenerar-se em conflitos internos e externos. Tal como dizem os sábios, todos os impérios caem, o lusitano não foi exceção. E do lado maubere, o fim do império constituía o caminho para a liberdade, mantendo obviamente a fruta colhida da semente plantada entre ambas as ancestralidades – a Língua Portuguesa – e outros elementos patrimoniais também importantes resultantes deste longo processo sociocultural. Porém, do norte do território se situa um outro gigante – a Indonésia ou República Indonésia – outrora conhecida por Companhia das Índias Orientais Holandesas. Obteve a independência da Holanda, em 1945 do séc. XX, montou-se um Estado de várias nações, sob a hegemonia javanesa, da ilha de Java sobre as demais. Um estado com sede de poder e imperialista de essência.
Aproveitou o fim do império português e começou a reivindicar à força o território que outrora se chamara Timor Português cuja invasão a Timor, era justificada com fins ‘pacíficos’, como força mediadora entre a suposta ‘guerra civil’ que se fazia entre timorenses. Entre três forças políticas a FRETILIN, (independência total) APODETI (pró-indonésio) e UDT (a favor de uma autonomia alargada a cargo de Portugal até se estabilizar para a independência total). Na altura havia um discurso ideológico que justificava as guerras e invasões, ao qual se dava o nome de bipolaridade de poderes. Este fenómeno que era, o já conhecido por todos – Guerra Fria – contextualizando, o mundo dividido em dois blocos, capitalista e comunista ou EUA e URSS. Em Timor, as tendências políticas eram esquerdistas de cariz marxista-leninista, (de um modo muito generalizado porque essencialmente se diferencia em outros graus) representada pela Frente Revolucionária de Timor-Leste Independente, a FRETILIN. A frente nacionalista que defendia a independência total de Timor, numa altura em que Portugal abriu espaço para a auto-determinação das suas colónias ultramarinas.
Um período que marcou o início de uma tragédia para Timor-Leste, com a invasão indonésia em 1975, iniciou-se uma campanha de extermínio populacional de grande escala, combatendo àquilo que se entendia por ‘ideologias comunistas’, e a FRETILIN claro, era uma marca fundamental de associação a estas ideologias, segundo as autoridades indonésias.
Foi então que a fruta começou a tornar-se um fruto proibido, os indonésios levaram a cabo uma grande campanha propagandística contra os patrimónios portugueses, e a Língua Portuguesa, obviamente, foi um alvo principal neste processo. Em teoria esta campanha estava em vigor, mas na prática era uma ilusão, porque combater um património de quatro séculos e meio em duas décadas é como contar as estrelas do céu, e por conseguinte começou uma consciencialização maior quanto à Língua Portuguesa, por parte dos timorenses em todos os aspetos, desde a Resistência Timorense, à Sociedade Civil e à Igreja Católica. Emergiu-se no imaginário coletivo timorense a importância da Língua Portuguesa, não só como elemento diferenciador de identidade mas, acima de tudo, como símbolo de liberdade. Isto não é invenção de nenhuma imaginação, foi um facto entre os timorenses, falar português era um sinal de provocação clara aos indonésios, era afirmação de liberdade e de desafio à autoridade estabelecida. Era a língua da Resistência Timorense nas três frentes: a frente armada, a frente diplomática e a frente clandestina, esta última de cariz urbano. A juventude timorense consciencializou-se que a Língua Portuguesa era uma arma de afirmação de liberdade, e a par dos trabalhos desenvolvidos pela Igreja Católica em Timor, instituiu-se uma escola com um currículo ministerial tal como as outras, vigentes em Timor na altura, mas esta era de ensino em português para todas as disciplinas curriculares. O Externato Português, como era conhecido, escola esta cujo ensino ficava a cargo dos padres timorenses e estrangeiros que falavam português, assim como outros timrorenses não-clérigos que tinham estudado no ‘tempo português’, incluindo padres portugueses que acabaram por ficar em Timor desde sempre. Como se deve imaginar, a adesão ao ensino do português foi enorme por parte de crianças e jovens, da primária ao secundário. Foi um projeto de provocação e de afirmação de liberdade clara que era mal encarada pela autoridade indonésia, que graças ao árduo e habilidoso trabalho diplomático da Igreja Católica, conseguiu-se tornar uma realidade.
O Externato Português foi banido de Timor pelo Ministério da Educação indonésia, após o massacre de Santa Cruz a 12 de Novembro de 1992. Tal era o poder que a Língua Portuguesa tinha, enquanto elemento de afirmação de liberdade que, a pouco e pouco, foi crescendo com força no imaginário coletivo da juventude timorense e das outras instâncias. Muitas famílias mantinham o hábito de falar português em casa, e por experiência própria, tinha amigos que só falavam português com seus pais. Os mais velhos, a maioria deles, só comunicavam em português, recriando um cenário imaginário do ‘tempo português’ e entre os mais novos, para quem não sabia falar a Língua Portuguesa, era uma espécie de contacto com algo exótico, despertava-se-lhes um sentimento de admiração como quem contempla uma obra de arte. Portugal era um destino de sonho, paradisíaco, um ‘jardim de Éden’ para o imaginário coletivo timorense. Numa altura em que era muito difícil e até proibido sair de Timor e muito menos para Portugal, então a imaginação ganhava asas como consolo à dura realidade da ocupação indonésia. Vivia-se uma tensão profunda, uma desconfiança constante e uma situação extremamente delicada, em que referir-se a Timor, como ‘Timor-Leste’ era assinar a sentença de morte, uma simples palavra em português, era sinal de provocação intensa e direta. Timor timur ou Propinsi Timor timur, em indonésio significa, província de Timor Oriental, assim era conhecido durante a ocupação. As missas inicialmente eram dadas em português mas a pouco e pouco foi-se proibindo o seu uso, mas maioria da população rezava em português. Houve uma tentativa por parte dos indonésios de substituir o uso do português, pelo tétun já que o indonésio era muito associado aos muçulmanos, uma tentativa que, na prática não teve grande impacto, porque as gentes se habituaram a rezar em português, só as missas sofreram uma proibição clara e concreta, uma vez que era mais fácil controlar. E a sua desobediência tinha sanções muito graves – tortura e em último caso, morte.
A novela brasileira “A escrava Isaura” dobrada em indonésio, detinha audiência recorde em Timor, o mundial de ’94 nos EUA, como é óbvio, teve uma torcida fervorosa por parte dos timorenses que os encaravam como os ‘irmãos brasileiros’. Os PALOP, Angola e Moçambique e alguns cabo verdianos deixaram gerações, timorenses os quais seus pais ou avós eram angolanos, moçambicanos, cabo verdianos, etc. Sempre que se falava de África havia uma associação automática aos PALOP, tudo isso acontecia no imaginário coletivo timorense, portanto estamos a falar de uma dimensão virtual que tinha raízes muito vivas e fortes, mediante a realidade de um Timor ocupado. As línguas correntes eram o tétun, o indonésio e o inglês e entre elas o português, ocupava uma posição de minoria, era o fruto proibido, exótico e contemplativo cujo sabor era a de liberdade. Uma fruta com sabor à liberdade, e sempre que se falava português, era como se alguém tivesse a dar uma dentada nessa fruta que sabia à liberdade, onde o espírito e a consciência se deslocam para um espaço de identificação com um imaginário cultural de centenas de anos e em última instância com o espaço lusófono. O ‘tempo português’, era um espaço imaginário de caráter nostálgico e para os mais velhos que o viveram, para muitos, era uma espécie de ‘loucos anos 20’, um período dourado, contemplativo e de certo modo, exótico. Fizeram passar esta ideia aos mais novos, que herdaram este universo imaginário, diríamos: ‘os loucos anos do tempo português’.
Assim era estruturada na consciência coletiva timorense, a Língua Portuguesa, que muito mais do que um elemento diferenciador, foi um símbolo de liberdade, de consolo, de esperança, de fé e representava uma arma fundamentalmente crucial que deu um golpe de morte ao domínio indonésio. O fruto que constituía sem dúvida uma pedra no sapato para a autoridade indonésia desde o início. E se pergunta de novo, porquê a Língua Portuguesa?
A resposta é óbvia e clara, a outrora fruto proibido mas com sabor à liberdade, sempre formou parte essencial do imaginário coletivo timorense, em consciência, memória e realidade prática com uma semente que fora plantada, desde o séc. XVI e que mais tarde, tomou forma de um fruto proibido no ‘jardim de Éden indonésio’, no qual os timorenses ao darem uma dentada, não foram expulsos do paraíso, muito pelo contrário, ganharam liberdade e expulsaram os indonésios do ‘jardim de Éden’ e este passou a ser o – jardim de Éden timorense – hoje uma entidade política, soberana, livre e independente, constituída num Estado de direito chamado – República Democrática de Timor-Leste, com duas línguas oficiais, tétun e português, a última de representação internacional e nacional e a primeira, derivação linguística de malaio-papua-português, é de representação nacional. Porquê que se fala português em Timor-Leste? A resposta é mais clara ainda, creio!