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Lançada compilação inédita de cartas originais de grandes nomes da história e da cultura de língua portuguesa

(Imagem: Reprodução Correio IMS)

Da primeira correspondência em português escrita em terras brasileiras, por Pero Vaz de Caminha, a trocas de mensagens entre os amigos e escritores Erico Verissimo e Lygia Fagundes Telles, o site Correio IMS reúne cartas pertencentes ao acervo do Instituto Moreira Sales.

Os documentos permitem chegar à intimidade de grandes nomes da história e da cultura brasileira. Pelas cartas, é possível descobrir, por exemplo, que d. Amélia de Leuchtenberg, madrasta de d. Pedro II, foi capaz de expressar genuíno sentimento materno. São cartas repletas de emoções, como a longa ode à beleza do Rio de Janeiro que faz José de Alencar numa carta endereçada a Machado de Assis, ou como as curtas palavras repletas de desespero no telegrama de um Tom Jobim fragilizado a Chico Buarque, após as vaias à música Sabiá, no III Festival Internacional da Canção em 1968.

Selecionamos algumas destas cartas do passado:

 

Avistamos terra!

De: Pero Vaz de Caminha
Para: Dom Manuel I
Porto Seguro, 1º de maio de 1500

No dia 8 de março de 1500, Pedro Álvares Cabral partiu de Lisboa com treze naus a caminho das Índias e terminou por desembarcar no Brasil em 22 de abril daquele ano. A mudança na rota descortinou ao mundo terras então desconhecidas. Nesta carta histórica, o escrivão da frota, Pero Vaz de Caminha, descreve os acontecimentos da viagem e a nova terra ao rei de Portugal.

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(Imagem: Reprodução Correio IMS)

[…]Na sexta pela manhã, às oito horas, pouco mais ou menos, por conselho dos pilotos, mandou o capitão levantar âncora e fazer velas. […] Quando fizemos vela, estariam já na praia, sentados perto do rio, cerca de sessenta ou setenta homens, que se haviam juntado ali, pouco a pouco. […] E, velejando nós pela costa, acharam os navios pequenos, mais ou menos a dez léguas do lugar onde tínhamos levantado ferro, um recife com um porto dentro, muito bom e muito seguro, com uma entrada muito larga. Lá entraram e amainaram. […]

Afonso Lopes, nosso piloto, estava em um daqueles navios pequenos. Por ser homem vivo e destro para isso, por ordem do capitão meteu-se logo no esquife e foi sondar o porto. Tomou dois daqueles homens da terra, mancebos e de bons corpos, que estavam numa espécie de jangada. Um deles trazia um arco e seis ou sete setas; na praia andavam muitos com seus arcos e setas, mas não fizeram uso deles. Já de noite, Afonso Lopes trouxe-os ao capitão, em cuja nau foram recebidos com muito prazer e festa.

A feição deles é parda, um tanto avermelhada, com bons rostos e bons narizes, benfeitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura. Não fazem o menor caso de encobrir ou de mostrar suas vergonhas, e nisso têm tanta inocência como em mostrar o rosto. Ambos traziam o lábio de baixo furado e metido nele seus ossos de verdade, brancos e do comprimento duma mão travessa, da grossura dum fuso de algodão, agudos na ponta como furador. Metem-nos pela parte de dentro do lábio, e a parte que lhes fica entre o lábio e os dentes é feita como uma torre do jogo de xadrez, estando ali encaixada de tal maneira que não os machuca nem os atrapalha no falar, comer ou beber. […]


Uma coroa, um trono e um berço!

De: Amélia de Leuchtenberg
Para: Dom Pedro II
Rio de Janeiro, abril de 1831

Em 1831, em meio a forte crise política, dom Pedro I abdicou em favor de Pedro de Alcântara, então com seis anos de idade, filho de seu primeiro casamento com dona Leopoldina. Foi obrigado a deixar o Brasil com a segunda mulher, dona Amélia de Leuchtenberg, e, na madrugada de 7 de abril daquele ano, noite da partida, ela, que estava com 19 anos e amava os enteados, deixou esta carta ao menino e futuro imperador dom Pedro II.

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(Imagem: Reprodução Correio IMS)

“[…] Quanta grandeza e quanta fraqueza a humanidade encerra, representadas por ti, criança idolatrada: uma coroa, um trono e um berço!

A púrpura ainda não serve senão para estofo, e tu, que comandas exércitos e reges um Império, ainda careces de todos os desvelos e carinhos de mãe.

Ah! querido menino, se eu fosse tua verdadeira mãe, se meu ventre te tivesse concebido, nenhuma força te arran­caria dos meus braços!

Mas tu, anjo de inocência e de formosura, não me perten­ces senão pelo amor que dediquei a teu augusto pai. Ape­nas sou tua madrasta, embora te queira como se fosses o sangue do meu sangue. Um dever sagrado me obriga a acompanhar o ex-imperador no seu exílio, através os mares, em terras estranhas… Adeus, pois, para sempre! Mães brasileiras, vós que sois meigas e carinhosas para com vossos filhinhos, supri minhas vezes: adotai o órfão coroado, dai-lhe, todas vós, um lugar na vossa família e no vosso coração.”


A vida que não para

De: Clarice Lispector
Para: Maury Gurgel Valente
Maricá, janeiro de 1941

No arquivo de Clarice Lispector sob a guarda do Instituto Moreira Salles encontra-se este fragmento de uma das primeiras cartas trocadas entre ela, que passava férias em Maricá (RJ), e Maury Gurgel Valente, seu futuro marido. Esta carta causará forte impressão em Maury, como se pode ler na resposta dele enviada em 9 de janeiro de 1941.

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(Imagem: Reprodução Correio IMS)

“[…] Existe também… sei lá o quê. Talvez qualquer coisa que valha a pena. Pelo menos para olhar do ônibus e sorrir.

Ou senão, por que não se entregar ao mundo, mesmo sem compreendê-lo? Individualmente é absurdo procurar a solução. Ela se encontra misturada aos séculos, a todos os homens, a toda a natureza. E até o teu maior ídolo em literatura ou em ciência nada mais fez do que acrescentar cegamente mais um dado ao problema.

Outra coisa: o que você, você individualmente, faria de especial se não houvesse a ruindade do mundo? A ausência dela seria o ideal para todos os homens em conjunto. Para um só não bastaria. Garanto-lhe que sempre haveria a arte de evasão e as preces e as fugas para Bach. Como diria o meu amigo, Tasso de Silveira:[1] “Tudo vem do pecado original…”

[…]

Quanto a mim, estou mais ou menos o.k. Não consegui, no entanto, soltar minhas rédeas. Planos, programas, consciência, vigilância. O que vale é que misturado a tudo isso, está a vida que não para.

Um abraço de

Clarice

P.S.: Nunca vi uma alma tão feia quanto a minha letra”


Uma glória esplêndida

De: José de Alencar Para: Machado de Assis
Tijuca [Rio de Janeiro], 18 de fevereiro de 1868

Em 1868, Castro Alves viajou para o Rio de Janeiro com a atriz Eugênia Câmara, por quem se apaixonara no Recife. Fora recomendado a José de Alencar, que, nesta carta, publicada no Correio Mercantil em 22 de fevereiro, apresenta o poeta de “O navio negreiro” a Machado de Assis.

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(Imagem: Reprodução Correio IMS)

“[…]Recebi ontem a visita de um poeta. O Rio de Janeiro não o conhece ainda; muito breve o há de conhecer o Brasil. Bem entendido, falo do Brasil que sente; do coração e não do resto. O senhor Castro Alves é hóspede desta grande cidade, alguns dias apenas. Vai a São Paulo concluir o curso que encetou em Olinda. Nasceu na Bahia, a pátria de tão belos talentos; a Atenas brasileira que não cansa de produzir esta­distas, oradores, poetas e guerreiros. Podia acrescentar que é filho de um médico ilustre. Mas para quê? A genealogia dos poetas começa com o seu primeiro poema. E que pergaminhos valem estes selados por Deus?

[…]

Felizmente estava eu na Tijuca. O senhor conhece esta montanha encantadora. A natureza a colo­cou a duas léguas da corte, como um ninho para as almas cansadas de pousar no chão. Aqui tudo é puro e são. O corpo banha-se em águas cristalinas, como o espírito na limpidez deste céu azul. Respira-se à larga, não somente os ares finos que vigoram o sopro da vida, porém aquele hálito celeste do Criador, que bafejou o mundo recém-nascido. Só nos ermos em que não caíram ainda as fezes da civilização a terra conserva essa divindade do berço.

Elevando-se a estas eminências, o homem aproxima-se de Deus. A Tijuca é um escabelo entre o pântano e a nuvem, entre a terra e o céu. O coração que sobe por este genuflexório, para se prostrar ao pés do Onipotente, conta três degraus; em cada um deles, uma contrição. No alto da Boa Vista, quando se descor­tina longe, serpejando pela várzea, a grande cidade réptil, onde as paixões pululam, a alma que se havia atrofiado no foco do mate­rialismo, sente-se homem. Embaixo era uma ambição; em cima contemplação.

Transposto esse primeiro estádio, além, para as bandas da Gávea, há um lugar que chamam Vista Chinesa. Este nome lembra-lhe naturalmente um sonho oriental, pintado em papel de arroz. É uma tela sublime, uma decoração magnífica deste inimi­tável cenário fluminense. Dir-se-ia que Deus entregou a algum de seus arcanjos o pincel de Apeles, e mandou-lhe encher aquele pano de horizonte. Então o homem sente-se religioso.

Finalmente, chega-se ao Pico da Tijuca, o ponto culminante da serra, que fica do lado oposto. Daí os olhos deslumbrados veem a terra como uma vasta ilha a submergir-se entre dois oceanos, o oceano do mar e o oceano do éter. Parece que estes dois infinitos, o abismo e o céu, abrem-se para absorver um ao outro. E no meio dessas imensi­dades, um átomo, mas um átomo-rei, de tanta magnitude. Aí o ímpio é cristão e adora o Deus verdadeiro. Quando a alma desce destas alturas e volve ao pó da civilização, leva consigo uns pensamentos sublimes, que do mais baixo remontam à sua nascen­ça, pela mesma lei que faz subir ao nível primitivo a água derivada do topo da terra.

Nestas paragens não podia meu hóspede sofrer jejum de poesia. Recebi-o dignamente. Disse à natureza que pusesse a mesa, e enchesse as ânforas das cascatas de linfa mais deliciosa que o falerno do velho Horácio. A Tijuca esmerou-se na hospi­talidade. Ela sabia que o jovem escritor vinha do Norte, onde a natureza tropical se espaneja em lagos de luz diáfana, e, orvalhada de esplendores, abandona-se lasciva como uma odalisca às carícias do poeta. Então a natureza fluminense, que também, quando quer, tem daquelas impudências celestes, fez-se casta e vendou-se com as alvas roupagens de nuvens. A chuva a borrifou de aljô­fares; as névoas resvalavam pelas encostas como as fímbrias da branca túnica roçagante de uma virgem cristã. Foi assim, a sorrir entre os nítidos véus, com um recato de donzela, que a Tijuca recebeu nosso poeta.”


Preciso de você

De: Tom Jobim
Para: Chico Buarque
Rio de Janeiro, 5 de outubro de 1968

Na histórica edição do III Festival Internacional da Canção, realizado em 29 de setembro de 1968, a canção favorita do público era Pra não dizer que não falei das flores, de Geraldo Vandré. A vencedora, no entanto, foi Sabiá, que tem letra de Chico Buarque e música de Tom Jobim. Como Chico estava em Veneza, Tom recebeu sozinho a vaia no final da fase brasileira, e em seguida telegrafou ao parceiro reivindicando sua presença. Chico atendeu o pedido e recebeu, ao lado de Tom, a vaia na grande final da fase internacional.

“Rio de Janeiro, 5 de outubro de 1968
Venha urgente. Presença imprescindível. Temos que estar juntos. Preciso de você.

Tom Jobim”


É uma joia

De: Erico Verissimo
Para: Lygia Fagundes Telles
Porto Alegre, 29 de outubro de 1974

Leitora de Erico Verissimo desde a adolescência, foi a ele que Lygia se dirigiu quando pensou em publicar seus primeiros contos. A amizade entre os dois escritores fundou-se em admiração recíproca, de que é testemunho esta carta.

(Imagem: Reprodução Correio IMS)
(Imagem: Reprodução Correio IMS)

“Querida Lygia,

Alguém mandou ao meu filho um patinho recém-nascido. As crianças interessaram-se por ele nos primeiro dias, mas depois o esqueceram e o bichinho anda por aí tão órfão que todas as tardes se refugia no meu escritório e se aninha entre os meus desert boots[1] – e eu tenho de bater máquina com a atenção dividida entre o que escrevo e aquela coisa penugenta e solitária, cuidando para não machucar o patinho, que nem nome tem. Afora isso, tudo corre bem. Luis Fernando e Lucia andam pela Europa, comendo, vendo os grandes filmes que nossa censura proíbe, com­prando discos e livros. Dois gordos felizes! E merecem. São 4 da tarde. O Louis Armstrong canta um blue pela rádio da universidade. Continuo burro e atra­sado no segundo volume do Solo.[2] Louvado seja Deus! E com boa saúde. (idem). A família toda bem.

Mas eu lhe escrevo para dizer que ando com saudade dum papo contigo. Sim, e para te contar que achei teu conto sobre a bolha de sabão[3] uma joia. Li-o duas vezes. A primeira vez como o leitor de ficção que sou. A segunda, com olho de oficial do mesmo ofício. Repito, é uma joia. Como pôde essa menina de suéter verde que conheci em 1943 (sorry pela data!) chegar a esta altura. As meninas? Continuo a afirmar que foi o maior romance deste ano e de muitos outros. Fico assim com um or­gulho de tio quando leio ou ouço alguém dizer bem desse livro. Você chegou muito alto no seu ofício, e vai manter-se aí por muito tempo. E ninguém lhe deu uma mão forte, decisiva. God bless you! (Que vontade tenho de que Deus exista!) Vou voltar ao Solo. Estou empacado em Portugal. Feitiço do Salazar? Sei lá.

Bom, o patinho ama­relo vai entrando em cena. Vou preparar o ninho dele. Até qualquer hora.

Um abração do Erico.”

[1] N.S.: Botas de design simples e resistente, geralmente usadas por soldados nas guerras.
[2] N.S.: Referência ao livro de memórias de Erico, Solo de clarineta, escrito em dois volumes. Erico Verissimo morreu antes de terminar o segundo volume, publicado postumamente, em 1976, com organização de Flávio Loureiro Chaves. Nele, o autor conta histórias de suas viagens à Europa e aos Estados Unidos.
[3] N.S.: O conto a que o autor se refere é “A estrutura da bolha de sabão”.

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