Debates sobre homossexualidade indígena aumentam entre jovens
As discussões sobre a sexualidade são uma tendência na sociedade moderna. Enquanto amplia-se a visibilidade de paradas gays, discussões de género, pesquisas académicas e estatísticas — que fomentam políticas públicas inclusivas — há, ainda, populações sobre as quais não se pensa muito. Uma delas é a população indígena brasileira. Como será vista a homossexualidade entre os indígenas?
Segundo levantamento oficial do Grupo Gay da Bahia — organização que concentra o papel das estatísticas da população LGBT do Brasil — existem por volta de 20 milhões de gays (10% da população), 12 milhões de lésbicas (6%) e 1 milhão de trans (0,5%) no Brasil. Os dados representam uma estimativa conservadora, tendo em vista que o órgão oficial de estatísticas brasileiras — Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) — não inclui no censo as questões relativas a género. Não há, ainda, estatísticas formais que unam orientação sexual e etnia.
O que há são dados do Censo Nacional realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, segundo o qual, em 2010, 0.4% da população brasileira se autodeclarava indígena. Em 1991, 34,5% dos municípios brasileiros continha pelo menos um indígena autodeclarado; em 2000, esse número cresceu para 63,5%; e, em 2010, 80,5%. Vale lembrar que estes números não incluem os povos isolados e os indígenas que estão em processo de reafirmação étnica — ou seja, que são originários de povos indígenas, mas não se autodeclaram como tal. Um processo natural após anos de dominação e repressão cultural.
Homossexualidade Indígena
O investigador Estevão Fernandes, professor da Universidade Federal de Rondônia (UNIR), trabalha com o tema da homossexualidade indígena já há alguns anos — e faz objecção ao uso da expressão, já que essa não era uma questão entre eles. Para o pesquisador, não se pode fazer a simples transposição de conceitos da cultura ocidental para a indígena. “Várias dessas nações, inclusive, nem sequer tinham — ou tem — um nome para denominar esse conjunto de práticas. Mesmo entre nós, que compartilhamos de uma cosmologia ocidental, essas questões não são unívocas. O que é um sujeito homossexual, ou bi, ou trans?”, questiona.
A ideia geral é simples: os indígenas não viam a homossexualidade como um problema simplesmente porque não existia debate sobre isso. Não era negativo nem positivo. O tema só veio à tona após o processo de colonização, que trouxe as lógicas cristãs moralizantes para o seio de uma sociedade antes desprovida delas. É preciso atentar, no entanto, para outro ponto: “Quando se fala em diversidade sexual indígena, muitos pensam que as aldeias indígenas antes da colonização eram uma orgia contínua. Essa imagem foi cunhada no início do processo de colonização e era utilizada para justificar o empreendimento colonial”, alerta Estevão.
Dos índios, à época, exigia-se comportamentos masculinos e femininos nos termos ocidentais. “Temos cerca de 300 povos indígenas no Brasil, de modo que cada realidade é um universo complexo de relações, mas não há nada que se possa chamar de uma ‘homofobia nativa’ a priori”, afirma. “Nações indígenas são diversas, plurais e diferentes entre si — quase sempre perdemos isso ao percebê-las genericamente como ‘indígenas’, e não como Xavante, Kayapó, Yanomami, Fulni-ô, Pataxó… Essa diversidade era ainda maior antes da colonização e, infelizmente, não temos maiores registros para além daqueles deixados pelos próprios colonizadores”, alerta.
A lógica de dois espíritos
Em meio à grande epidemia de HIV e SIDA nos anos 1980, indígenas que moravam nas cidades voltaram às suas terras originárias para morrer junto às suas famílias, em seus territórios ancestrais. Ao chegarem, foram acusados de trazer “doenças de bichas brancas” por haverem “esquecido suas culturas”. Mas a reação foi a nível cultural: resgataram nas suas culturas um papel ancestral fundamental de pessoas com dois espíritos (two-spirit), um homem e um mulher. Eram pessoas sagradas, as quais por terem dois espíritos eram pacificadores e embaixadores, como We´wha (1849–1896), pertencente à nação Zuni (Novo México) e que chegou a conhecer o presidente Grover Cleveland em 1886.
Os dois espíritos chamaram a atenção para duas coisas. “Em primeiro lugar, para o fato de que não foram eles que ‘abandonaram as suas culturas’ mas, ao contrário, foram suas próprias nações — subservientes ao colonialismo —, que os abandonou, ao esquecerem esse papel tradicional. Dessa maneira, o foco de suas críticas passou a ser o processo de colonização. Em segundo lugar, as críticas two-spirit chamam a atenção para o risco de se particularizar demais o olhar sobre fenômenos relativos aos desejos e afetos indígenas, como fazemos nós, antropólogos.”
Preconceito: origem colonial, impactos modernos
Em 2018, 420 LGBTs morreram no Brasil por homofobia: 76% vítimas de homicídios e 24% de suicídios. Os dados são do Grupo Gay da Bahia (GGB), que mostra uma pequena redução de 6% em relação a 2017. Em 2017 houve o número recorde de casos nos 39 anos desde que o GGB iniciou esse banco de dados.
Em relação à etnia, 58,4% de brancos, seguidos de 29,3% de pardos e 12,3% de pretos. Não há dados sobre indígenas. “Há casos de morte, agressões diversas, e mesmo suicídio entre indígenas que escapam aos padrões impostos ao longo da colonização. A própria falta de estatísticas neste sentido é uma forma de violência, pois os invisibiliza.”.
O suicídio é a 4ª principal causa de morte entre jovens de 15 a 29 anos no Brasil, segundo o Ministério da Saúde. E, de acordo com a revista científica Pediatrics, gays, lésbicas e bissexuais, devido à homofobia, têm 6 vezes mais chance de tirar a própria vida em relação a heterossexuais. O risco de suicídio aumenta em 20% quando o jovem convive em ambientes hostis à sua orientação sexual.
A dificuldade em abordar o tema
Segundo o pesquisador da Universidade de Rondônia, várias lideranças indígenas tradicionais possuem claras reservas sobre tratar o tema da homossexualidade. Eles veem muitas vezes o tema como “perda da cultura” ou como uma diluição da agenda dos movimentos indígenas no Brasil. Ou seja, pautas como juventude e sexualidade são vistas como uma divisão dos focos que “realmente importam”, como demarcações de terras, saúde e educação. Para eles, a sexualidade é de foro íntimo.
Há outro ponto que se impõe no debate sobre o tema: a crescente inserção de missões de motivos humanitários e religiosos nas comunidades tradicionais. “Sem generalizar, algumas igrejas evangélicas, sobretudo as de denominação neopentecostais, vem recuperando o papel de guardas morais nas aldeias, e o fazem de uma forma bem ostensiva. Boa parte dos relatos de preconceito, hoje, que me chegam das aldeias, chegam quase sempre atrelados a ações de pastores.”, destaca o professor.
A juventude
Como em relação a outros temas, a juventude vem se organizando em grupos de redes sociais e Universidades para debater o assunto. As pautas específicas de jovens e mulheres incluem temas mais amplos do que a tradicional demarcação de terras, como políticas universitárias, violência sexual e saúde mental. A organização tem se ampliado nos últimos anos, com o assunto chegando a Encontros Municipais e Estaduais de jovens indígenas. “Vejo uma tendência para que eles passem a se organizar nacionalmente. Para que isso aconteça, por outro lado, é necessário vencer a resistência que vários ainda encontram nas suas próprias aldeias, inclusive devido à presença de igrejas ou pelo preconceito passado na convivência com a sociedade não-indígena”.
No processo de reconhecimento e recuperação da cultura indígena, jovens têm, ainda retomado a pesquisa, como o jovem antropólogo indígena Josi Tikuna, do Amazonas, que também trabalha a ideia do preconceito como uma herança colonial e não intrinsecamente indígena.
Os valores indígenas permitem uma relativamente boa relação geracional. Segundo Estevão, para boa parte das nações indígenas no Brasil, ser gay, ou trans, ou bi nos nossos termos não é mais importante do que ser uma boa filha, ou ser solidário, nos termos deles. Uma pessoa “se assumir como homossexual e indígena é, como digo, uma dupla subversão à máquina colonial: branca, hetero, cristã, liberal, conservadora. Se eles usarem essa categoria — ‘homossexual indígena’ — como uma assunção política contra a colonização.”.
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