Meta Fati ruma a Lisboa à procura de melhores cuidados de saúde. Bubacar Turé luta diariamente em prol das mulheres. Princesa Peixoto e Anabela Carvalho unem-se na defesa dos PALOP. Amadú Dafé usa a palavra para enaltecer a mulher nos seus livros. Alice Frade dedica a vida a estudar e a defender os direitos das mulheres. Janica Ndela assume-se como feminista e encara a cooperação entre as mulheres como uma prioridade. Sete pessoas unidas num só propósito: o de contar ao mundo aquilo que está a acontecer na Guiné-Bissau
“Num país profundamente marcado pela pobreza, pela discriminação e pela desigualdade de género, o caminho para que os direitos das mulheres sejam garantidos passa pela “mudança de mentalidades”. A convicção é de Bubacar Turé, vice-presidente da Liga Guineense dos Direitos Humanos (LGDH). Diretamente ligada a esta questão está a taxa de alfabetização guineense que, segundo dados recolhidos pela UNESCO, é de 71.8% para os homens contra apenas 48.3% para as mulheres. Estes números representam uma das várias provas da desigualdade de género que se verifica na Guiné-Bissau, uma vez que enquanto os homens podem frequentar a escola, as mulheres têm a função de ficar em casa a cuidar do lar.
Ainda que, na Guiné-Bissau, as mulheres sejam as responsáveis pela vida familiar, não lhes são garantidos direitos humanos básicos, tais como o acesso a educação de qualidade ou a cuidados de saúde, maioritariamente a sexual e a reprodutiva, como comprovam os dados do Fundo de População das Nações Unidas (em inglês, UNFPA), que revelam que, em 2019, apenas 53,8% dos partos foram realizados por profissionais qualificados. “Apesar da existência de legislação, as mulheres continuam a ser alvo de graves problemas e de atentados aos direitos humanos, como é o caso da mutilação genital feminina, dos casamentos infantis precoces e forçados e da violência sexual”, destaca Alice Frade, diretora executiva da Associação para a Cooperação sobre População e Desenvolvimento (P&D Factor) e sócia fundadora da Associação Corações com Coroa, que adianta ainda que “os abusos sexuais infanto-juvenis são perpetrados não apenas no contexto da família alargada, mas também nos espaços públicos, nas escolas ou por vizinhos”.
A história de Meta Fati, mulher guineense e auxiliar de limpeza, é a prova de que a Guiné-Bissau dispõe de condições de saúde deficitárias. O aparecimento de uma doença levou-a a vir para Portugal sozinha, aos 36 anos, à procura de melhores cuidados médicos. “Vim para Portugal devido a problemas de saúde e, por não ter condições adequadas na Guiné-Bissau, à procura de melhores cuidados. Desde que cheguei aqui, a minha vida mudou completamente e a minha saúde melhorou muito”, assume.
A cultura acima do direito
A submissão das mulheres guineenses face aos homens é uma questão cultural. Pelo menos, é assim que todos tentam explicar a questão que assombra a Guiné-Bissau. “Não há outra forma de explicarmos o direito, sem olharmos para a cultura. O direito é a expressão da cultura”, afirma Amadu Dafé, escritor guineense e jurista na Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS). Do mesmo modo, Bubacar Turé reflete acerca das repercussões das práticas culturais, no que toca aos direitos das mulheres na Guiné-Bissau: “As práticas e as questões culturais e sociais acabaram por traduzir uma limitação grave para o exercício dos direitos das mulheres.”
Um dos principais problemas que mais afeta as mulheres guineenses e preocupa aqueles que lutam para garantir os seus direitos é a mutilação genital feminina. Com consequências que não são tidas em consideração, os abusos contra as mulheres na Guiné-Bissau e o desrespeito pelos seus direitos são encarados pela sociedade como parte da tradição e da cultura. “Mais de 50% das mulheres são submetidas à mutilação genital e é uma prática brutal, que viola os direitos fundamentais. É a maior agressão e um dos maiores métodos de atentar contra os direitos fundamentais da determinação sexual das mulheres”, revela o vice-presidente da LGDH.
Na mesma perspetiva, Princesa Peixoto, coordenadora da Área Social da União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa (UCCLA), descreve como, muitas vezes, é realizada a mutilação genital feminina e os problemas que resultam dessa prática: “As meninas quando entram na fase da puberdade cumprem o ritual Fanado, em que elas pintam o rosto e entram no mato, tendo depois o clitóris cortado por mulheres mais velhas. É uma forma de emancipação, mas que, na prática, é muito complexo, porque além de muitas meninas morrerem de infeções, outras ficam com sequelas graves e permanentes. É uma violência muito grande, principalmente contra meninas, que depois se vão tornar mulheres que carregam esse trauma.” Também Anabela Carvalho, assessora de comunicação da UCCLA, acredita que “qualquer coisa que seja para cortar o prazer a um homem ou a uma mulher não é cultura.”
Por mais que se deva cultivar a cultura, a verdade é que a mulher, no contexto em que se encontra, não se sente parte integrante da sociedade, surgindo como uma figura objetificada. “É necessário quebrar determinadas práticas culturais e tabus para que a mulher se possa sentir como o homem, possa sentir um sentimento de pertença”, realça Amadú Dafé.
O pilar de uma família
Bubacar Turé acompanha de perto o papel da mulher e a maneira como é vista pela sociedade guineense. Resiliência é o traço mais evidente da mulher na Guiné-Bissau, fruto do trabalho duro, da sujeição à submissão, da discriminação e, principalmente, da luta diária que mantém de pé toda a estrutura familiar. Saem de casa cedo para ir trabalhar e regressam tarde para cuidar da família, são responsáveis pelos encargos financeiros, cuidam da casa e dos filhos e, ainda assim, são vítimas de abusos e desrespeitos constantes. “São as mulheres que sustentam as famílias e as que mais assumem as despesas dos filhos. São as mulheres que trabalham arduamente para manter a família. E acho isso injusto, na medida em que elas depois não gozam desse poder, assim como não gozam dos seus direitos ao lazer”, lamenta Janica Ndela, ativista guineense e técnica superior de projetos na UMAR – União de Mulheres Alternativa e Resposta.
Enquanto escritor, Amadú Dafé usa as suas obras para destacar a imagem e o papel da mulher guineense na sociedade, focando-se tanto no lado bom como no mau: “Em todas as minhas obras, a mulher guineense aparece num lugar de destaque, quer na perspetiva da sua emancipação, do seu esforço, da sua luta diária para manter firme as famílias, os filhos, as casas e a própria sociedade, quer na perspetiva em que é submetida aos maus-tratos e à submissão.” Todo o sofrimento e toda a força tornam as guineenses “mulheres fortes e batalhadoras”, segundo Meta Fati. Também Alice Frade as define como “verdadeiras guerreiras” e reconhece que todos os testemunhos sobre a vida destas mulheres “são lições de vida”.
A mulher sob o olhar do homem
“Os homens têm efetivamente noção do papel que as mulheres desempenham. O problema é que a maior parte não faz muito para o mudar porque não lhes convém, uma vez que elas lhes tiram dos ombros uma grande parte das suas responsabilidades próprias”, relata Amadú Dafé. Conveniência e responsabilidade: toda a questão se resume nestas duas palavras.
O homem guineense tem plena consciência do quão importante a mulher é. No entanto, como lembra o escritor, “eles são os detentores do poder”. Não são, por isso, os homens que tratam das tarefas domésticas ou cuidam dos filhos. Estes são trabalhos reservados para a mulher pela “sociedade”. Amadú Dafé expõe que esta realidade se deve a um pressuposto cultural: “Toda a sociedade acredita que a mulher fica com o papel das tarefas domésticas e de cuidar dos filhos porque será o homem a tomar conta da economia familiar, a garantir o sustento, será ele quem tem de sair de casa para ir à lavoura, ao campo, cultivar, tratar da comida do dia a dia.”
No entanto, com o passar dos anos, a sociedade guineense tem assistido a algumas mudanças. Hoje em dia, as mulheres, tal como os homens, também elas trabalham na terra, por exemplo, no arrozal, conhecido como o “trabalho das mulheres”.
Esperança para a Guiné
“Não se pode mudar uma realidade que não se quer ver”, adverte o escritor Amadú Dafé. O principal objetivo é que a mulher seja tratada com igualdade: com respeito, dignidade e humanidade, seja em que parte do mundo for.
Como refere a diretora executiva da P&D Factor, Alice Frade, “também a Guiné, enquanto país, se deve organizar, tanto internamente como externamente para que sejam produzidas medidas que melhorem a qualidade de vida das mulheres, nomeadamente no que toca à sua saúde”, acrescentando que “não há um dia, na Guiné-Bissau, em que não morra uma mulher por questões associadas à gravidez e ao parto”.
Janica Ndela sente que faz parte de uma geração que vai fazer a diferença no contexto que se vive na Guiné. A sua experiência como habitante na Guiné-Bissau, no Brasil e em Portugal consolida a sua opinião e mostra-lhe a importância de defender o direito à igualdade das mulheres guineenses à escala global, independentemente do género: “A luta pela igualdade de género não deve ser uma luta só das mulheres, como também dos homens”, sublinha.
Por André Meireles, Beatriz Gaiato e Letícia Cruz, alunos da licenciatura em Jornalismo da Escola Superior de Comunicação Social de Lisboa.