Especial viagem: A Bósnia aos olhos de uma viajante brasileira
A Bósnia é um território distópico de confluências em que o sonho de uma convivência pacífica foi enterrado em vala comum. Quando o nome da capital é evocado, algumas ideias nos vêm: o cerco de Saraievo, a morte de Francisco, o estopim da primeira guerra da Europa toda.
Mas a Bósnia é acima de tudo, resiliente.
A resiliência é uma característica física que permite que um material ganhe sua forma normal depois de um trauma. Um elástico de cabelo é resiliente.
É resiliente também o desenho feito de pedras no alto do morro desafiando a cruz de um metro e meio que faz uma sombra de duas décadas da guerra religiosa na cidade de Mostar, no sul do país. I LOVE BIH, escrito em pau e pedra. Únicas armas de defesa, quando do mesmo morro escorriam balas e pneus cheios de dinamite que corroíam a infeliz cidade cercada por montanhas e inimigos.
Os que sobreviveram não sabem como: Esse país não deveria existir, afirmam ainda incrédulos, se beliscando para acordar de um pesadelo que começou 25 anos atrás e que ainda não terminou.
Antes da guerra de 1990 e tantos, 7 em 10 casamentos ali eram mistos. Desde o começo que não havia tempo para se dividir. Da Bósnia, saíram a maior parte dos partisãos iugoslavos que lutaram contra o Fascismo. Hoje, muçulmanos e cristãos não podem frequentar as mesmas escolas.
Em Sarajevo, o cheiro dos kebabs dominam as ruas. Palavras em turco se misturam com o alfabeto cirílico e croissants austro-húngaros. Os que se dão a generalizações a chamam de Jerusalém da Europa. Os guias de turismo a reduzem a 3 palavras: Oeste encontra Leste.
O museu mais bem classificado por um site de viagens tem o nome da data de um massacre impronunciável. Srebrenica. Uma dezena de milhares de muçulmanos, limpeza étnica, o açougueiro dos Balkans, o estupro como arma de guerra, os 44 meses do cerco de Sarajevo, a mulher que perdeu seus seis filhos, a mulher que fez uma colagem com a fotos dos 4 filhos e do marido perdido, a família que enterrou um só osso do filho que se dividiu entre 3 covas, os capacetes azuis, as palavras de ódio, o descaso. Srebrenica. As minas estão desativadas e as feridas abertas.
A Bósnia exige os pés cravados no chão, o coração aberto e a mente sã.
Já em Mostar, é possível subir ao topo do ninho do sniper, que se divertiam ao brincar de tiro ao alvo por algumas moedas. Vê-se a ponte de 470 anos destruída em 3 dias. É possível subir às costas do velho homem e de lá saltar no rio gélido para sentir-se dona do mundo.
Os sinais neo-fascistas cintilam nas paredes das escolas na altura de olhos e mãos de crianças. Sentimos-nos todos jovens demais para a indecência daquele território cujas violências sofridas não tem classificação indicativa.
Mas há também a sutileza da velha senhora que mistura sálvia e romã para fazer seus xaropes e nos oferece três cafés. Um para quando se chega, um para quando se fica e um para quando se deve ir embora. Na cidade, uma xicará de café tem o tamanho de todas as banalidades que queremos nos contar na mesa de um boteco.
Nos dias na Bósnia há um pouco de incompreensão, plenitude e loucura. Monges que dançam, mouros que lutam, um shopping center com paredes pré-históricas, um país dividido por linhas imaginárias que não conseguem atar os laços de sua ancestralidade.
Em uma terra onde a vida sabe-se improvável há, acima de tudo, a resiliência.
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