Vamos a um pequeno exercício: Como se chama a organização que planeou e efetuou os ataques do dia 11 de Setembro de 2001, em Nova Iorque e Washington, nos Estados Unidos? E na Síria, quem tem levado a cabo toda uma campanha de terror? Já agora, como se chama a célula terrorista que raptou 270 meninas em Chibok, na Nigéria? Para terminar, uma pergunta mais fácil, porque é sobre um acontecimento mais recente. Como se chama o grupo que executou 148 estudantes em Garissa, no Quénia?
Sabemos que acertou em todas, mas só para confirmar as respostas são Al-Qaeda, Estado Islâmico (ISIS), Boko Haram e Al-Shabaab. Agora a sério, temos quase a certeza que acertou nas duas primeiras, demorou algum tempo a pensar na terceira, e nem lhe ocorreu nada na última e está envergonhado por isso. Não esteja, a culpa não é sua… ou será?
Afinal, o que distingue todos estes atos terroristas? Porque que é que temos uns tão presentes e outros tão distantes do nosso imaginário? Porque não recebem o mesmo tratamento por parte dos media? Porque fazemos luto por algumas vítimas e ignoramos outras? Tem tudo que ver com proximidade. Cultural ou geográfica, está aí a chave para justificar toda esta diferenciação.
Nos exemplos que lhe demos, há uma diminuição crescente das semelhanças culturais (nem sempre geográficas), quer entre agressores, quer entre vítimas, com todos os países lusófonos, daí que, em todos eles, sem excepção, tenham merecido tratamento diferenciado, quer da parte dos media, quer da nossa – salve a redundância.
A proximidade cultural à América nem necessita de ser explicada. O Estado Islâmico está “mais perto” porque recruta em todo o mundo, com elevado sucesso. Pelo menos cinco portugueses já foram mortos em combate na Síria, e estima-se que haja mais oito nas fileiras do ISIS, um deles, Nero, nascido em Angola. O Boko Haram circunscreve o seu espaço de atuação ao nordeste da Nigéria. Apesar de ter um território controlado, com uma área equivalente ao tamanho da Bélgica (!!!), este está demasiado próximo do centro de África, longe de tudo, do reconhecimento, da memória e claro, das capas dos jornais.
Estamos a ser injustos. Durante um tempo estiveram nas bocas do mundo, ou melhor nas hashtags do mundo. As redes sociais, sempre elas, iniciaram uma campanha pelas meninas raptadas em Chibok. A hashtag #BringBackOurGirls tornou-se tão viral que até a primeira-dama americana, Michelle Obama, entrou na corrente juntamente com um leque de celebridades de todas as áreas. Depois, tal como já tinha acontecido com a hashtag #Kony2012, sumiu com o mesmo imediatismo com que apareceu. Pior que isso, com os mesmos resultados práticos. Nenhuns. As meninas continuam raptadas. Nós continuamos com hashtags vazios de conteúdo.
Todos nos esquecemos, e pelo caminho nem percebemos muito bem o que estava em questão, e sim, estava muito mais que censurar um senhor da guerra que recorre a crianças-soldado (prática, infelizmente, bastante comum), ou um o “mero” rapto de 270 meninas para servirem de escravas sexuais. Dito assim, parece relativização, mas não, é que o problema é mesmo bastante maior, e nós não estamos sequer a aflorar a sua superfície (e também não estamos minimamente preocupados com isso).
O massacre de Garissa talvez seja o melhor exemplo de tudo isto. Em países como Portugal, as notícias chegaram quase 3 dias depois de ter acontecido. Aparentemente, as vítimas tiveram mais um azar, faleceram no mesmo dia do centenário realizador português Manoel de Oliveira e o tempo de antena estava lotado. Como pode a morte de 148 estudantes quenianos competir com a morte de um português de 106? A resposta foi-nos dada por todos os meios de comunicação social, da televisão à rádio, da imprensa escrita aos blogues. Não pode!
Quantos portugueses sabem onde é o Quénia? Quantos brasileiros o sabem apontar num mapa? É na ponta distante de África e nem faz fronteira com Moçambique, logo, não tem hipóteses. Venha quem vier, morram quantos morrerem.
A imprensa é a principal culpada ou a principal vítima do fenómeno? Recentemente, alguns dos editores e diretores dos maiores órgãos de comunicação social em Portugal fizeram “mea culpa” sobre o sucedido. Estamos em crer que ninguém os ouviu. A imprensa é seguramente a principal culpada do fenómeno, a principal vítima, mais tarde ou mais cedo, seremos todos nós.
É que enquanto olhamos para o lado, para o que nos mostram, para onde nos mandam olhar, crescem os fenómenos a que não damos atenção. Se estivéssemos mais atentos, poderíamos ter reparado que o Al-Shabaab teve um processo de surgimento similar ao do Boko Haram e que a sua forma de atuação, tal como as suas pretensões também são exatamente iguais. Se tivéssemos reagido a tempo, talvez tivéssemos conseguido impedir o crescimento do Estado Islâmico, até ao ponto em que já não sabemos como o travar (até porque nunca se consegue travar o que não se compreende) e, pior que isso, em que está cada vez mais infiltrado e presente nas nossas sociedades.
Mas insistimos em fingir que nada se passa, e vamos continuar a fazê-lo até ao dia em que uma destas organizações conseguirá com sucesso trazer o terror até nós, e perpetuar, através da infâmia, mais ou menos condescendida por nós, o seu nome nas nossas memórias coletivas, e na História. Tal como fez a Al-Qaeda, que num dia soalheiro de setembro imortalizou o seu nome e uma data, que por mais que queiramos, não mais conseguiremos esquecer.
Mas aí, aí já será tarde demais…