E se pagássemos aos médicos para nos manterem saudáveis?
Tudo começou com uma dor de dentes. Um dos implantes de cerâmica de Matthias Müllenbeck havia caído na noite anterior. Durante a sua ida ao dentista percebe que, em vez de lhe ser sugerida a reparação do implante, para que a dor desapareça, o dentista está a elucidá-lo acerca das vantagens de uma cirurgia para implantar um dente de titânio. Basicamente, trata-se da substituição de um dente danificado por um artificial, que é aparafusado na mandíbula. Segundo o bussiness developer alemão, o custo desta cirurgia ronda os 10 mil dólares americanos (cerca de 8.650 euros). Por apenas 100 dólares (cerca de 86.50 euros), poderia substituir o implante anterior por outro. “Qual foi a preocupação do dentista com essa sugestão: a saúde do seu paciente ou o dinheiro que ele poderia render para seu lucro?” – foi esta a pergunta que Müllenbeck colocou a si mesmo, naquele momento que viveu, e à audiência que o ouvia em Londres, na TED Talk que protagonizou.
Como refere, de seguida, esta sua experiência não foi um caso isolado. Um estudo de um jornal norte americano revelou que, nos Estados Unidos da América (EUA), a estimativa de procedimentos cirúrgicos que acontecem sem que o médico explore totalmente outras opções de tratamento ronda os 30%. E esta lista inclui implantes de endoprótese e de pacemaker, tal como cirurgias de substituição da anca e de remoção do útero. “Porquê?” – pergunta Matthias. Porque é que alguns médicos são incentivados a optar por procedimentos desnecessários? Talvez porque os sistemas de saúde, em si, incentivam que se apliquem, ou não, certos procedimentos ou tratamentos. A maioria dos sistemas de saúde compensa os médicos financeiramente, numa base de taxa por serviço, de acordo com o número (quantidade) e o tipo (qualidade) de tratamentos desempenhados. Pode ser esse incentivo monetário que leva alguns médicos a optar por tratamentos cirúrgicos de alto custo – ou seja, de elevado lucro -, em vez de explorar outras opções.
Embora alguns países tenham começado a implementar a compensação com base no desempenho, a arquitetura dos sistemas de saúde atuais, de uma maneira geral, ainda não incentiva os médicos a prevenir ativamente o aparecimento de uma doença e a limitar os procedimentos aplicados a um paciente aos verdadeiramente mais eficazes.
Como solucionamos este problema?
Para Müllenbeck, estes temas não são novidade. O seu cargo enquanto diretor de licenciamento e desenvolvimento de negócios na Biopharma (renomado grupo farmacêutico) dá-lhe alguma legitimidade para opinar; mas, mesmo assim, a sua ideia pode ser considerada revolucionária. Segundo ele, a mudança necessária para eliminar este problema acarreta um “redesign fundamental da arquitetura dos sistemas de saúde” e uma “completa reformulação da estrutura de incentivos”. As compensações dadas pelo sistema devem incentivar os médicos a manterem os seus pacientes saudáveis, em vez de só serem pagos por procedimentos que envolvem a necessidade de uma doença ou uma condição já existente no paciente. Assim, teremos uma transformação que resulte na passagem do sistema atual, que cuida sobretudo dos doentes, para um sistema inovador, que cuide sobretudo das pessoas saudáveis. O objetivo, como explica o alemão, seria mudar de “Sick Care” (cuidados ao doente) para “Heatlh Care” (cuidados de saúde). É uma mudança de paradigma: prevenir em vez de remediar.
Esta mudança pode mudar o foco de todas as pessoas e organizações envolvidas, desde médicos e hospitais até empresas farmacêuticas e médicas. Além disso, não é vantajoso para as pessoas que o sistema compense os médicos pela quantidade e tipologia de tratamento efetuado. “Não seria melhor compensar médicos, hospitais e empresas farmacêuticas por cada dia que um indivíduo permanece saudável e não desenvolve uma doença?”, perguntou Matthias. A sua sugestão vai mais longe e, felizmente, desembarca num porto bem concreto: poderíamos, por exemplo, usar dinheiro público para pagar uma taxa de saúde a uma seguradora por cada dia que um indivíduo permanece saudável, não desenvolve uma doença ou não necessita de qualquer outra forma de intervenção médica urgente. Se esse indivíduo adoece, a seguradora não receberá nenhuma compensação monetária pelas intervenções médicas aplicadas para tratar a doença, mas seria obrigada a pagar por quaisquer opções de tratamento que fossem, comprovadamente, consideradas eficazes para reestabelecer a saúde do indivíduo. Quando o paciente estivesse novamente saudável, a taxa de saúde estatal seria reposta e voltaria a ser paga à seguradora. No mínimo, é uma ideia inteligente, não vos parece?
Com esta proposta, todos os agentes do sistema de saúde são responsáveis por manter os seus pacientes saudáveis e, além disso, são incentivados a deixar de fora qualquer intervenção desnecessária para a resolução do problema. Quanto mais pessoas saudáveis houver, menor será o custo para tratar dos doentes e maiores serão os benefícios económicos para todas as partes envolvidas.
Para preservar a saúde efetivamente, “as pessoas precisarão de estar dispostas a partilhar os seus dados médicos de forma constante”, explicou, para que o sistema de saúde consiga antecipar qualquer ação que seja necessária tomar para salvaguardar os pacientes. Exames físicos, monitorização dos dados de saúde ao longo da vida, sequenciação genética, construção do perfil cardiometabólico e tecnologias de imagiologia permitirão que os “clientes” tracem, juntamente com os seus nutricionistas e médicos, os melhores mapas para tomar decisões face às suas dietas, às suas medicações e à sua atividade física – sempre guiados pela ciência. Assim, diminuirão a probabilidade individual, que varia de acordo com cada pessoa, de serem afetados por uma doença considerada de alto risco.
A análise de dados por Inteligência Artificial e a miniaturização das tecnologias de sensores já estão a começar a possibilitar uma vigilância e monitorização do estado de saúde pessoal. Vejamos o cancro: um dos principais problemas de saúde dos dias modernos. Segundo Müllenbeck, um dos maiores problemas em algumas das doenças oncológicas é que um grande número de pessoas é diagnosticada demasiado tarde – embora os fármacos e tratamentos que já existem pudessem tê-las curado. Agora, as novas tecnologias permitem que, através de apenas alguns mililitros de sangue, seja detetada a presença de ADN tumoral na nossa circulação sanguínea, antecipadamente.
O impacto de um diagnóstico inicial pode ser absolutamente decisivo para a sobrevivência do paciente e, embora essa já seja uma informação de senso comum, o alemão exemplificou. O índice de sobrevivência de cinco anos para o cancro do pulmão, quando descoberto na sua primeira fase, é de 49%; o mesmo índice, no caso da doença ser descoberta na quarta fase, é de 1%. “Ser potencialmente capaz de evitar um grande número de mortes, através de algo tão simples quanto um teste sanguíneo de ADN tumoral, pode fazer com que certos tipos de cancro se tornem em doenças controláveis”, afirmou, uma vez que o início da doença pode ser detetado mais cedo e os resultados positivos do tratamento podem, provavelmente, aumentar.
O que exige a mudança de que falamos?
Infelizmente, e como seria de esperar, mudanças revolucionárias acarretam sempre alguns esforços. O “redesenho” daquilo que temos hoje para um verdadeiro sistema de saúde, que se foca na “prevenção e nas mudanças comportamentais“, requer que cada agente no sistema mude. É preciso que haja disposição política para mudar orçamentos e normas, de forma a que estas possam ir ao encontro da prevenção, da educação e de um novo cenário de incentivos financeiros e não-financeiros; é preciso que se crie um quadro regulamentar para a recolha, o uso e a partilha de dados pessoais de saúde, “que seja rigoroso e sensato”; é preciso que profissionais de saúde, hospitais, seguradoras e empresas farmacêuticas e médicas reajustem a sua abordagem; mais importante, requer a disposição e motivação dos indivíduos em mudar o seu estilo de vida, de uma forma sustentada, para dar prioridade à manutenção da sua saúde – “além de estarem abertos a partilhar os seus dados de saúde numa base constante”.
A mudança não acontecerá de um dia para o outro, mas a simples reorientação dos incentivos que existem nos sistemas de saúde atuais, para ativamente manter as pessoas saudáveis, já poderá ser suficiente para impulsionar a transformação. Se o fizéssemos hoje, como sugere Matthias, poderíamos estar já a evitar o aparecimento de mais doenças e, também, a detetar o início de outras, de forma a garantir uma vida mais longa e mais saudável para mais pessoas. Para instrumentalizar esta mudança, não precisaríamos de esperar por mais tecnologia; a maioria daquela que é necessária para o propósito já existe hoje. “Mas isto não é uma questão tecnológica. É, primeiramente, uma questão de visão e vontade”.
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