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De prancheta na mão para unir culturas e quebrar barreiras

Deixaram o conforto da Europa para tentar a sorte em Moçambique, onde os campos de futebol ainda estão por desbravar. Com histórias distintas, mas com os mesmos objetivos na bagagem, três treinadores portugueses revelam o que os leva a treinar numa realidade ainda longe dos padrões do futebol profissional

 

São quatro os treinadores portugueses atualmente a trabalhar no principal campeonato de Moçambique: Hugo Martins, juntamente com o seu adjunto, Guilherme Vasconcelos, e Pedro Miguel, treinador de guarda-redes, Hélder Duarte, Alexandre Cepeda e Horácio Gonçalves, num país que para uns é um mundo novo e para outros uma segunda casa. Com condições de trabalho diferentes e a mesma ambição, têm vindo a fazer história no sudeste de África.

Alexandre Cepeda nasceu em Maputo, quando a capital moçambicana ainda se chamava Lourenço Marques. O seu pai trabalhava numa empresa local, a mãe num hipermercado, mas pouco tempo depois da Independência, à semelhança de tantas outras famílias, acabaram por regressar a Portugal. “Não me recordo de muito, mas ainda me lembro de alguma coisa. Cheguei a Portugal faltava uma semana para fazer oito anos e posso dizer que as coisas estão mais ou menos na mesma situação”, conta.

Atualmente de novo no país que o viu nascer, Alexandre Cepeda recorda os anos de jogador em Portugal: “Não tive formação, comecei já nos juniores. Passei pelos juniores do Vitória FC e depois pelos juniores do SC Braga, onde depois acabei por ser emprestado.” Foi o início de um percurso pelas divisões inferiores do nosso futebol, onde se chegou a cruzar com Mourinho Félix, tendo representado clubes como União de Leiria, Alcanenense, CD Tondela, entre outros.

Após uma carreira preenchida, o reencontro com o futebol chegou mais tarde: “Trabalhei 16 anos na Nestlé, mas infelizmente sofri um acidente de trabalho e tive de ser operado à coluna. Já tinha os cursos de treinador e um amigo sugeriu que falasse com o meu padrinho, que estava cá. Estive dois meses na casa dele e conheci algumas pessoas.”

Os contactos estabelecidos levaram-no a assumir o projeto do MG da Matola, gerido por um empresário indiano que o convidou para ser treinador principal. “Ele não tinha noção do que era o futebol. Para ele, era ganhar a Taça de Moçambique e não o Campeonato.” Apesar de não conseguir o ‘milagre’ na taça desejado pelo presidente, terminou a fase regular em primeiro, alcançando a fase de subida ao Moçambola, o que lhe valeu um convite do Clube do Chibuto. Após mais quatro anos em Moçambique, passou ainda por África do Sul, Burquina Faso e China, onde esteve na academia do SL Benfica.

 

Alexandre Cepeda no Clube do Chibuto, em 2012
Alexandre Cepeda no Clube do Chibuto, em 2012

 

O regresso aos treinos, após um interregno motivado pela Covid-19, deu-se através da equipa feminina Sub-19 do GD Os Vidreiros, uma oportunidade que se revelou uma experiência de aprendizagem: “Não tem nada a ver com futebol masculino, porque são senhoras. Temos de ter mais cuidado a dialogar, são mais sensíveis. Não é a mesma coisa que estar a treinar homens, mas há mulheres que jogam mais do que homens.”

Após este período, surgiu a proposta do recém-promovido Baía de Pemba, onde desempenha as funções de treinador-adjunto e coordenador de formação, um posto vantajoso financeiramente, mas que traz dificuldades: “O dinheiro não é tudo. Às vezes, não temos apoio, sentimos falta da família. Não é fácil, mas estou na luta, tem de ser. Estou aqui há um mês e meio. Como isto tem 12 equipas, deve acabar lá para outubro ou novembro.” A segurança e a qualidade de vida na capital de Cabo Delgado foi uma surpresa, fruto da ideia “totalmente errada” que tinha da província. “Moro numa casa ao pé da praia. Acordo, dou um mergulho na água e vou para o clube. Moçambique faria bem a muita gente”, conclui.

 

Já no Baía de Pemba, com os seus jogadores.
Já no Baía de Pemba, com os seus jogadores.

 

Dar continuidade a uma história de sucesso

Mais a sul, na cidade da Beira, encontramos um português que já viu o seu nome eternizado no futebol de Moçambique – Hélder Duarte, guarda-redes na formação, licenciado em Educação Física, e que se destacou pelo seu trabalho com os escalões mais jovens. “Tenho uma maneira muito especial de lidar com os miúdos, a nível de liderança. Para mim, são tratados como atletas e como homens, tal como trato o meu filho, com exigência, disciplina e rigor”, assume.

Foi com este método que marcou centenas de crianças que treinou na Dragon Force, posto que ocupou até ter sido chamado para ser treinador principal de um novo clube que surgiu em Maputo, em parceria com o clube da Invicta. Corria o ano de 2018 e Hélder Duarte embarcava na primeira experiência profissional fora de Portugal: “O que me fez ser escolhido para vir montar o projeto foi, primeiro, já conhecer o país, porque estive cá 15 dias, em 2016, a fazer o caça-talentos. Além disso, a pessoa que montou o clube gostou daquilo que desenvolvemos cá e da nossa organização. Passa um bocadinho pela primeira imagem, a nossa forma de estar, a forma como falamos com os outros, isso salta logo à vista. Depois, é o conhecimento e a organização. Foi um câmbio perfeito.”

Começou assim a aventura na Matola, para arrancar o projeto da Associação Black Bulls, impulsionado pelo presidente Junaide Lalgy, conhecido empresário do país. Com quatro equipas inicialmente, as condições não foram ideais desde ao princípio. Nos primeiros meses, Hélder e o adjunto Inácio Soares dispunham apenas de “um campo de Futebol 11 Relvado e um campo de Futebol 7 de Terra”. No entanto, uma digressão bem-sucedida a Portugal aumentou a vontade do presidente em investir em mais e melhores condições para o clube. “Neste momento, se entramos na Black Bulls parece que estamos na Europa”, afirma.

Com a metodologia dos dois portugueses implantada no clube e um investimento crescente, estavam lançadas as bases para o sucesso, que se revelou imediato. Contra todas as expetativas, a ABB venceu tudo aquilo que disputou, subindo à 2ª Divisão e carimbando o título nacional nos Sub-19. “Isso deu uma bagagem muito grande ao ‘boss’. Ele começou a ver que este é o caminho. E então começou a investir”, explica.

O complexo desportivo continuou a crescer. No ano seguinte, de quatro passou-se para oito equipas de competição, culminando na subida da equipa sénior ao principal campeonato do país e mais um ano avassalador na formação. “Fomos campeões nos escalões todos, fizemos finais tipo equipa A contra equipa B, em algumas taças.”

Um domínio sustentado pelo constante investimento do presidente Lalgy, que beneficiava com a crescente atenção que era dada à sua empresa e à marca que havia criado. Assim, foi possível providenciar condições que mais nenhum clube no país oferecia, desde alojamento e equipamento até salário e dinheiro para o transporte. Mas era ainda necessária a gestão por parte dos treinadores: “Temos de controlar tudo, fisioterapeutas, motoristas, alimentação, tudo. Tudo o que podemos imaginar do clube passava por nós. Por isso, aquilo é um projeto meu – e do Inácio – que fomos construindo. Como fomos ganhando, o presidente foi-nos dando”, confidencia. O sucesso materializou-se na conquista do Moçambola 2021, um feito inédito no futebol do país.

Hélder Duarte com o título de campeão.
Hélder Duarte com o título de campeão.

 

O triunfo não passou despercebido. No início de 2022, surgiu a oportunidade de ingressar no FC Famalicão como adjunto de Rui Pedro Silva, passando o testemunho de treinador principal da ABB ao seu adjunto, Inácio Soares. “As coisas não correram como estávamos à espera”, lamenta.

A experiência em Portugal foi curta e, no final de 2022, novamente livre no mercado, retomou as conversas com a ABB: “Já tinha viagem, visto de trabalho, tudo, mas acabei por discordar com o presidente de algumas situações e disse que já não ia viajar.” Surgiram alguns convites, com o Ferroviário da Beira a ser a opção a seguir, num cargo de treinador que mantém até hoje, ocupando o 4º lugar no Moçambola. “O Ferroviário é um clube centenário, com grande infraestrutura, mais dentro daquilo que era a minha perspetiva, que é lutar por conquistas.” Os objetivos são, como sempre, ganhar: “Não entro em lado nenhum para perder. Mas sei que o clube não está minimamente organizado para sermos campeões.” Ainda só se pode imaginar até onde irá chegar com o Ferroviário, mas o nome de Hélder Duarte já faz parte dos livros de ouro do futebol moçambicano.

 

A primeira experiência em Moçambique

Na ausência de Hélder Duarte e de Inácio Soares, que atualmente treina as camadas jovens da seleção nacional moçambicana, ficou uma vaga por ocupar ao leme da ABB. Perante a necessidade de um técnico capaz de dar continuidade ao sucesso recente, Junaide Lalgy recrutou Hugo Martins.

Apaixonado por futebol desde cedo – o seu pai, Fernando, jogou vários anos na 1ª Divisão – foi depois de deixar de jogar que, por sugestão de um amigo, tirou o curso de treinador. “A paixão surgiu de forma gradual. Até experienciar o treino não, mas quando aconteceu foi um amor que surgiu em mim”, confessa Hugo Martins.

O treinador começou por clubes modestos da zona de Lisboa. Foi adjunto de Luís Norton de Matos no Chaves (II Liga) e União da Madeira (I Liga), defrontou o Benfica no primeiro ano como treinador principal e, em 2017, surgiu a primeira experiência no estrangeiro – a seleção Sub-17 da Índia, que disputava o Mundial do escalão em casa nesse mesmo ano, algo que pesou na decisão. Depois do torneio, aumentaram as incertezas: “Senti que era altura de voltar a Portugal e construir um nome, já com mais experiência e bagagem.”

Volvidos alguns anos a treinar entre Campeonato de Portugal e Liga 3, surgiu a oportunidade de regressar ao estrangeiro, primeiro no Chipre – um período menos feliz – e depois por meio do presidente Lalgy.  “Uma das coisas que me fez vir para Moçambique foi, primeiro, a seriedade e o nome que o presidente tem no país. É uma pessoa credível. Depois, as condições físicas”, indica. Juntamente com dois elementos da equipa técnica, desde o início do ano que fez da Matola a sua casa. Implementou os seus métodos de treino numa adaptação à cidade que se tem mostrado tranquila.  “A verdade é que é muito menos pesado do que a Índia, que tem muito mais pessoas e é muito mais caótico. E depois, como temos ganho os jogos todos, as pessoas gostam de futebol e abordam-nos na rua, pedem para tirar fotografias e tratam-nos bem. Há aqui coisas que são fantásticas e que dificilmente vamos ver na Europa. São experiências ricas que nos permitem ver outra realidade”, conta.

Tal como afirma, até agora o registo é quase 100% vitorioso, tendo mesmo vencido o Provincial de Maputo na pré-temporada. Mas Hugo Martins mantém-se focado e com os pés no chão: “As expectativas são vencer o Moçambola. Um sonho que estou a tentar incutir nos jogadores é ganhar a taça de Moçambique. Gostava que a pudéssemos oferecer ao presidente.”

 

Hugo Martins com o troféu provincial, junto da sua equipa técnica.
Hugo Martins com o troféu provincial, junto da sua equipa técnica.

 

Apenas o futuro dirá onde chegarão estas equipas, mas com a ABB a registar quase um pleno de vitórias, o Ferroviário em boa posição e o Baía de Pemba a ser considerado a “equipa sensação” pela imprensa local, tudo indica que estes três treinadores serão capazes de fazer história no futebol de Moçambique. O foco no presente e na continuidade dos bons trabalhos é a prioridade para estes três treinadores. Tal como afirma Hugo Martins: “O facto de pensar assim faz-me estar focado no presente e não pensar muito no futuro. Quero vivenciar e experienciar esta oportunidade que me foi concedida também pela confiança que as pessoas me dão. O futuro será o menos importante.”

 

Por Luiz Ferreira, Miguel Silva e Vasco Guedes, alunos da licenciatura em Jornalismo da Escola Superior de Comunicação Social de Lisboa.

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