Meados de abril de 2012, regressava a Lisboa depois de uma viagem a Cabo Verde. Tinha finalmente conhecido Praia, capital de um país entranhado no meu conceito de fraternidade entre povos. Regressava a um dos meus berços, Lisboa, a cidade das paixões, um lugar onde há muito deixara de ser estrangeiro. A madrugada fria anunciava uma inequívoca mudança de continente. No aeroporto, aguardava-me uma longa fila reservada aos cidadãos extra-comunitários.
O vislumbre daquele aglomerado entediado, com os lentos avanços rumo ao guichê do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, exaltou-me uma profunda impaciência, que crescia à medida da minha fraca resistência ao sono. Mais ou menos a meio do percurso, dei conta que havia também um guichê para os cidadãos da CPLP. Estranhamente, estava vazio. Eu, um cidadão da CPLP, vi ali negada a possibilidade de contornar a fila do resto do mundo. Pertencia afinal a uma comunidade que não me diferenciava dos demais. Perdia assim a oportunidade de exibir a minha pertença.
Pouco depois já estava safo daquela espera entediante. Peguei na minha mala. Saí rumo ao autocarro que me levaria à Duque de Loulé, ao apartamento onde vivia e onde celebrava as manhãs na varanda que, numa distância platónica, beija o Tejo. A cidade já tinha acordado, tornando desnecessária a minha vontade de dormir. Tinha então tempo para pensar no guichê vazio.
Não poderia, de forma alguma, procurar respostas sobre processos dinâmicos através de uma racionalidade determinista. A lusofonia é de facto um lugar-comum lapidado pela história. No entanto, não é uma pedra estanque. É um processo histórico ancorado num passado partilhado, onde o presente bebe de referências e o futuro poderá ser projetado. Na realidade, o guichê só estava vazio porque nós, os do lugar-comum, permitimos que assim fosse.
Quando falamos de lusofonia, falamos intuitivamente de processos complexos, recheados de conflitos, de encontros e desencontros, que nos dão, mesmo sem darmos conta, uma noção abstrata de família. Existem indubitavelmente elos que nos unem. Essas conexões são de tal forma fortes ao ponto de não podermos falar e ser “nós” sem falar e ser “outros”. Estes elos são, justamente, os elementos fundamentais da lusofonia. Porém, já diziam os sábios, a complexidade é tanto maior quanto maior a sua simplicidade. A lusofonia, não obstante a sua complexa configuração, nada mais é que um processo construído e em construção.
A construção da lusofonia implica, na verdade, uma reinvenção que exige a superação de um passado de dominação colonial e, por inerência, de um certo subtexto da sua própria etimologia – passível também de ser interpretada como uma espécie de neo-dominação.
Um grande amigo angolano disse-me há uns anos atrás – citando um autor de que agora não me recordo o nome – que nós, os africanos, não somos lusófonos, somos povos que também falam português. Nesse dia, tive, provavelmente, a melhor conversa sobre esta nossa pertença a que damos o nome de lusofonia. Embarquei num questionamento profundo. Compreendi a perspetiva. Passei algum tempo a pensar no assunto. Acabei, finalmente, por discordar.
Concluí que a lusofonia é fundamentalmente um espaço, ornamentado por vínculos históricos, que se estava a permeabilizar às críticas dos que buscam espaços de afirmação e de inauguração de paradigmas que rejeitam os estigmas dos “terceiros mundos” em “vias de desenvolvimento”. A lusofonia, a partir desse momento, passou a ser, no meu entendimento, algo a ser reformulado num quadro de partilha recíproca de oportunidades de desenvolvimento humano.
Aí sim, o guichê vazio terá sempre alguém…será preenchido com um sentido de comunidade a ser preservado e enaltecido!
Como é que um país que exercita a desunião institucional pode ter a pretensão de pertença a uma comunidade, onde muitos sonham com a contratualização de uma união política, económica e social? O meu país, a Guiné-Bissau, é um exemplo paradigmático do paradoxo inscrito nesse questionamento.
O interessante dos nossos processos de desunião é o seu recheio de contradições. Por um lado, o cidadão comum, no seu dia-a-dia, tende para a exaltação da sua guinendade e de pertença a uma noção abstrata e romântica de nação. Por outro, as lideranças políticas tendem para a exploração e instrumentalização das nossas supostas diferenças (étnicas e de classe) para a obtenção de ganhos políticos. Temos assim contradições alimentadas por uma permeabilidade simultânea aos ideais de unidade nacional e às instrumentalizações divisionistas.
As clivagens praça vs mato; djintons vs gentios; diplomados vs não diplomados; os de cor vs pretos; raça x vs raça y; cristãos vs muçulmanos vs animistas são, na essência, fronteiras artificiais criadas, justamente, para injetar legitimidade nas desigualdades que anunciam. Aproveitando-se desse quadro, as lideranças obscurantistas têm encontrado alimento na velha fórmula: “dividir para reinar”. As divisões tornam-se efetivas nas mentes e nos sentimentos quando a artificialidade é elevada à condição de realidade representada. Converte-se, assim, a riqueza da diversidade cultural na pobreza da xenofobia e do preconceito primário. Resultado: um povo vulnerável, com medo, desagregado e em busca da auto-preservação junto dos “seus” supostos pares.
Ora, a construção de uma lusofonia renovada precisa de uma Guiné-Bissau que atue no plano internacional como uma nação de facto, com instituições promotoras da unidade nacional e com a capacidade de discutir com a comunidade lusófona a contratualização implicada na sua própria renovação. Sem esta transformação interna e projeção externa, o país arrisca-se a ser um peso morto no concerto das nações. Um peso que seguramente adiará a renovação da lusofonia, pois não se pode participar na (re)construção de uma comunidade de nações, partindo de uma situação interna onde reine a desconfiança e o conflito institucional.
Como diria Amílcar Cabral, temos de nos unir para poder lutar e de lutar muito para nos mantermos unidos.