Ele tem os pés virados ao contrário para enganar os caçadores que o perseguem por meio de suas pegadas na terra. Também tem cabelos ruivos – apesar dos traços indígenas —, às vezes de fogo, que podem iluminar seu caminho pelas matas fechadas. E uma capacidade de imitar sons de animais, assobios e mesmo vozes de pessoas. Esta é a descrição comum de um dos personagens folclóricos mais antigos do Brasil: o Curupira. Menino protetor das florestas, para uns, anão intransigente e violento para outros.
Anjo bom
O Curupira mora na floresta, à qual devota carinho, atenção e todo o cuidado possível, recolhendo dela apenas o necessário à sobrevivência. Como tem um senso de justiça apurado, espera que os outros façam o mesmo: respeitem a natureza. Por isso, a protege como consegue, inclusive com violência. Para o Curupira, não há problema em caçar ou derrubar árvores, desde que seja na medida exata para a alimentação ou construção de casas e objectos necessários à sobrevivência.
Talvez o Curupira chorasse se soubesse que, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil perdeu aproximadamente 298mil km2 em florestas no período de 17 anos, compreendido entre 2000 e 2016. Ou talvez as punições severas do Curupira — se não fosse lenda — impediriam esse número estrondoso. Quem sabe?
Anjo mau
A mesma lógica de que o bem paga-se com o bem e o mal com o mal — muito forte na cultura ocidental — é presente. Quando em frente aos bons caçadores, Curupira transforma-se em animais. E dá sinais para ajudá-los a sair das florestas e encontrar comida e água. Já o abuso não é bem-visto. Em relação aos maus caçadores ou desmatadores, como forma de punição, o Curupira pode atraí-los para o meio da floresta. Com isso, faz perderem-se na mata, longe de fontes de águas. A angústia de ficar preso em um loop infinito de busca da saída os enlouquece. Ou então, eles simplesmente morrem de fome.
E para você, o Curupira é mais um anjo bom ou mau? Questão de perspectiva.
Reflexo da cultura
Para além da figura fantástica, de origem tupi-guarani, o Curupira reflete a cultura indígena brasileira na relação com o meio ambiente. Os deuses indígenas são, frequentemente, representações da natureza. Por exemplo: Iara é a deusa das águas; Angra a Deusa do fogo; Tupã, senhor dos trovões e tempestades; Jaci, deusa da Lua e Guaraci, deus do Sol. Curupira é o protetor das matas.
Além do respeito às florestas, a reprodução da lenda do Curupira segue uma mesma função presente em outras sociedades: criar regras e disciplinar quem as infrinja. Cria-se, de certa forma, uma identidade cultural. E parte das influências que a cria vem por meio das histórias ouvidas ao longo da vida, contadas pela família, escola ou na literatura.
As lendas folclóricas e indígenas, históricas na cultura brasileira, voltaram fortemente à Literatura na era do Regionalismo. O movimento literário do século XIX buscava romper com a forte influência cultural europeia até então. Para isso, estimulava o debate e a inserção de questões regionais como índios, sertão, cerrado, as praias e as matas.