Se quer conhecer Cristiano Mangovo, pode perguntar sobre o pintor angolano em Portugal, Itália, França, Estados Unidos e, claro, Angola. Todos são países que já receberam exposições das belas pinturas do jovem artista vindo de Cabinda. Obras que mereceram prêmios como os da Embaixada Italiana — prêmio Mirella Antognoli Argelá — e da Aliança Francesa (Alliance Française) — prêmio ENSA Art.
“Vejo a arte como o meu mundo”, exalta Cristiano. “É só aí que tenho a sensação de me sentir um peixe dentro de água. Imagine um peixinho sem água! Vejo a arte como uma forma pacífica de combater a ignorância. Vejo-me como um orador a quem faltam palavras para se expressar. A quem faltam meios de expressão para narrar sobre aqueles que estão na escuridão, ignorados ou esquecidos pelos olhares de alguns. Sinto-me um pequeno deus quanto estou perante a tela”.
O pintor — e também escultor —, nascido em 21 de novembro 1982, não dispensa um prato de feijão com funji (uma massa cozida de farinha de milho ou mandioca), gosta de gatos e não consegue viver, claro, sem Arte. Calmo, pensador e observador, também é um mestre na positividade. Por isso tem como lema de vida “Sonhar, acreditar e alcançar com otimismo”.
A Conexão Lusófona dá a conhecer aquele que tem o sonho de “conseguir transformar mentalidades, despertar consciências, através do meu trabalho, no sentido da construção de uma sociedade mais justa. Esse é um caminho longo, que está, e que estará sempre por fazer”. Então, quem é Cristiano Mangovo?
MANGOVO, Cristiano.
Nascido em Cacongo, Cabinda, Angola, Cristiano Mangovo é o terceiro de sete irmãos. Filho de um militar — hoje pastor evangélico — e de uma camponesa, morou com tios e foi criado desde os três anos na República Democrática do Congo como refugiado.
“Todos na família somos herdeiros de um dom da minha mãe, que tem muito jeito para o desenho. Até hoje ela continua a desenhar os seus próprios sonhos. Sou o único da família que, além de ter herdado essa queda para o desenho, procurei desenvolver os meus estudos em torno da questão artística”, afirma. O artista destaca, entretanto, que um dos irmãos começa a seguir o mesmo caminho.
A situação de refugiado de Cristiano foi devido aos conflitos políticos entre a Frente para a Libertação do Enclave de Cabinda (FLEC) e o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), que se estendia desde a década de 1970.
A FLEC queria a independência de Cabinda e a disputa com a Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA) — que pretendia a Angola unida — durou anos. “Lembro-me que, mesmo no Congo, em determinados períodos, éramos perseguidos por questões políticas. Apesar de tudo, a minha família conseguiu manter um certo equilíbrio até que se realizou a assinatura do acordo da paz”, aponta o artista.
Cristiano conta que, desde criança, desenhava em qualquer suporte. “No chão, na parede, em papel, até que, um dia, a minha mãe tomou a decisão de me inscrever na escola de artes”. Foi quando despertou o conhecimento e a curiosidade sobre as teorias e os processos envolvidos na produção artística, levando-o a visitar oficinas e a trabalhar como ajudante de grandes mestres. Ingressou na Academia de Belas Artes de Kinshasa — capital do Congo — e completou o bacharelado (licenciatura) em 2007.
A Faculdade: bases e rupturas
Cristiano reconhece o papel da faculdade no processo construtivo, desde que seja vista com olhos críticos. “O meio académico concede-nos as ferramentas básicas que nos permitem perceber as normas técnicas e saber diferenciar as tendências artísticas, contextualizando-as no campo alargado da História da Arte”, pondera. Mas é preciso saber ultrapassar os cânones.
O momento de sua ruptura com o tradicional deve-se a eventos extra-classe. Mais especificamente alguns workshops sobre cenografia e performance com professores da Escola de Artes Decorativas de Estrasburgo — inclusive François Duconseille — e uma formação sobre Performance In Situ, moderada pelo artista camaronês Goddy Leye — conhecido por sua arte conceitual. “Mudou totalmente a minha forma de pensar e de olhar os trabalhos dos próprios professores e de alguns mestres por cuja obra eu me sentia limitado”, destaca.
A partir disso o então estudante passou a ausentar-se das aulas, fazer profundas pesquisas por conta própria e a ficar no quarto para pintar. Queria se autossustentar, testar seus paradigmas e passar por um processo de experimentação que caracteriza como “extrema, em busca duma originalidade pictórica”. É desse período que guarda uma das experiências mais fortes na memória.
“Uma noite um colega surpreendeu-me no meu quarto. Estava a pintar, nu, dentro do meu quarto, e ele fez um escândalo. Mobilizou a maior parte dos estudantes, que começaram a achar que eu era um feiticeiro. Mas eu sentia-me apenas guiado por um forte instinto a que tinha de corresponder”, lembra.
Por um tempo, trabalhou com arte mural para angariar dinheiro e fazer as obras que ele realmente queria. “Organizava-me e, com o dinheiro que juntava, fruto desses trabalhos, comprava vários materiais. Além de tintas, comprava pano cru para fazer as minhas próprias telas e cola e madeira para fazer as grades”. Hoje, Cristiano Mangovo deixou a arte mural e segue nas exposições.
Expressionismo, realismo, arte de protesto? As influências
Comumente associado ao Expressionismo e Surrealismo pela crítica, é possível ver nas suas obras uma arte de protesto, com foco social. Mas Cristiano Mangovo deixa claro: “Se afirmar que considero a minha obra como arte de protesto — embora esse não deixe de ser um dos seus objetivos —, estarei a limitá-la”. Segundo o artista, o que se pode afirmar é que “se centra maioritariamente numa reflexão persistente sobre a condição humana e o planeta, aproximando-se de temas que considero fundamentais como os direitos humanos e a ecologia”.
“A arte é a forma que tenho de exteriorizar as minhas vivências, os meus pensamentos e as minhas emoções e isso não cabe apenas numa dita expressão de influência mais pop, ou mais surrealizante”, sintetiza. “Há de fato um conjunto de estilos e correntes artísticas de que sou visualmente herdeiro e de que faço uso, no seu conjunto, de uma forma, diria, quase inconsciente. Faço-o, mas sem, no entanto, me impor qualquer tipo de barreira ou regra estanque no momento em que pinto”. A sua produção, portanto, tem uma linguagem muito particular — e é mutante.
Hoje, o artista tem referências como Francis Bacon, Jean-Michel Basquiat e Tomás Etona, com quem trabalhou entre 2011 e 2013. Porém, garante que sua inspiração é o cotidiano, às vezes transmitido por televisão ou jornais. É a vida em Angola e na África.
“Do período em que trabalhei com o mestre Etona, ficaram-me memórias vivas das suas obras, dos rostos das esculturas que fazia. Algumas assumiam-se através da desfiguração na parte das estruturas em que o mestre assumia a matéria quase em bruto, sem lhe dar tratamento. Esse sentido do inacabado e da matéria em bruto era a parte que mais me tocava. Quando, em 2013, comecei a trabalhar sozinho, senti uma forte influência dessa imagem na minha pintura”.
Futuro
Já começando a ter expressão internacional, Cristiano Mangovo sente que ainda tem um grande percurso pela frente. “Embora tenha vários projetos internacionais e importantes a surgir, pessoalmente considero-me ainda um pequeno artista”. Uma formação em escultura contemporânea está no horizonte, mas por enquanto está feliz a viver seu sonho de “ser artista e levar a minha obra a outras latitudes, fora de Angola”.
Em maio de 2019, Cristiano estará na feira de arte contemporânea ARCO, em Lisboa, e terá uma exposição individual no edifício central da Câmara Municipal de Lisboa entre 7 e 20 de maio. Esta última, chamada “Minas e Ruínas”, procura através de 12 obras inéditas, promover uma reflexão profunda sobre a “complexa realidade da precariedade laboral na indústria de mineração de diamantes, ouro e cobalto em África e sobre as práticas artísticas atuais e as suas possíveis implicações na sociedade”. Vale a pena conferir!