Em 1997 o mundo lusófono celebrou o terceiro centenário da morte do Pe. Antônio Vieira, nascido em Lisboa em 1608 e falecido na Bahia em 1697. Ou seja, o nosso Imperador da Língua Portuguesa, no dizer de Fernando Pessoa, por ter vivido quase noventa anos, permitiu-nos comemorar igualmente o seu quarto centenário de nascimento, apenas onze anos mais tarde, em 2008. E com que admirável disposição, energia, vigor, determinação e entrega cumpriu ele sua longa trajetória pela terra. Aliás, pelas terras, já que vindo com a família para a Bahia aos 6 anos de idade, formou-se por aqui, ordenou-se jesuíta em 1634 e voltou a Portugal pela primeira em 1641, onde desenvolveu sua trajetória de grande pregador e iniciou uma longa carreira no campo da diplomacia.
Palmilhou o Velho Mundo, cruzou o Mar Atlântico por várias vêzes, sofrendo mais de um naufrágio, visitou a África (pregou na cidade de Ribeira Grande, em Cabo Verde) e embrenhou-se pelas vastidões da Província do Grão- Pará, em um incansável trabalho missionário. Encantou cortes europeias com sua pregação desassombrada e o brilho de sua inteligência invulgar; insurgiu-se contra a intolerância da Inquisição e foi por ela punido; advogou a causa dos judeus; defendeu os gentios brasileiros contra a exploração iníqua dos colonos portugueses; denunciou com veemência os maus tratos infligidos aos escravos na Bahia, e exerceu papel de grande destaque na política externa da corte portuguesa.
Esse foi o notável Pe. Antônio Vieira, a quem em 1997 decidimos homenagear com uma modesta iniciativa, proposta pelo meu amigo Rui Rasquilho, o sempre lembrado adido cultural da Embaixada portuguesa em Brasília. Consistia ela na apresentação de uma conferência, encenada à semelhança de uma apresentação teatral, pronunciada pelo jesuíta, especialista em Vieira e Professor de Relações Internacionais da UNB (Universidade de Brasília), José Carlos Aleixo, ilustrada por trechos de sermões e cartas do homenageado, lidos pelo próprio Rui Rasquilho e por mim. Simbolicamente, Vieira estava ali representado, pela presença de um jesuíta, um português e um brasileiro…
Nosso espetáculo foi inicialmente apresentado no palco do auditório da Embaixada de Portugal em Brasília, e em outros locais da cidade, seguindo depois para Fortaleza, Goiânia, Ribeirão Preto e Porto Seguro. Nesta última cidade, a apresentação se deu na Igreja Nossa Senhora da Pena, uma das mais antigas do país, na ocasião em que lá se reunia a Comissão Nacional para as Comemorações do V Centenário do Descobrimento do Brasil. Anos mais tarde, e aproveitando uma passagem do Pe. Aleixo por Portugal (Rui Rasquilho já havia retornado à sua bela Alcobaça e eu me encontrava à frente da Missão do Brasil junto à CPLP – Comunidade dos Países de Língua Portuguesa), voltamos a apresentar a conferência-recital em Lisboa, Alcobaça e outros sítios.
Com o objetivo de ampliar a divulgação da vida e obra de Antônio Vieira, o Pe. Aleixo fez editar o texto de sua palestra, acompanhado dos originais dos sermões e cartas incluídos no espetáculo, em um livreto destinado à distribuição em escolas e universidades, na esperança de que estudantes e outros interessados possam eventualmente reencená-lo.
A título introdutório, escrevi para esse livreto a seguinte apresentação:
Vieira: Arauto da Lusofonia e Campeão dos Direitos Humanos em pleno Século 17
Lembra-me bem que, em 1997, na qualidade de então Presidente da Comissão Nacional para as Comemorações do V Centenário do Descobrimento do Brasil, quando nos propúnhamos uma programação de eventos que pudessem levar o país a uma reflexão crítica sobre nossos quinhentos anos de história, procurei a minha amiga e grande atriz Denise Stoklos para encetar um projeto nesse sentido, na área do teatro. Expliquei-lhe que o espetáculo a ser criado deveria mostrar as “vozes dissonantes” ao longo de nossa história, que, caso tivessem sido ouvidas em seu tempo, teriam feito do Brasil um país mais justo, mais equilibrado, mais integrado e muito mais feliz. E a primeira voz a me ocorrer, naturalmente, foi a do Pe. Antônio Vieira, um verdadeiro campeão dos direitos humanos em pleno século 17.
Além disso, não se poderia imaginar alguém que melhor encarnasse o espírito do que chamamos hoje de lusofonia que esse jesuíta nascido em Portugal, de origem mesclada de sangue africano, inteiramente formado no Brasil, para onde veio com a família aos seis anos de idade, e de onde só se afastou pela primeira vez aos vinte e sete, para conquistar com sua inteligência e talento não apenas a sua terra de nascimento, como outras terras e outras Cortes do Velho Mundo.
Na sua língua, que era também a de Camões e Gil Vicente e Gregório de Matos, foi sagrado mais tarde indisputado Imperador, por quem de direito. Em seu ofício de pregador, ninguém formulou melhor a arte de pregar (“seminare semens”), como ninguém exerceu com mais proficiência o seu ofício. Difícil imaginar mais brilho, inteligência, contundência, entusiasmo, indignação, sabedoria, e compreensão pelas fraquezas humanas. Seus Sermões, ditados por inextinguível fogo sagrado, vergastava as injustiças, a corrupção, a insensibilidade dos abastados, ao passo que defendia os índios, os negros, os judeus. E esse fogo quase o arrastou à própria fogueira da Inquisição.
Essa vasta cultura (“um saber de experiências feito”) expressava-se através de uma linguagem riquíssima, repleta de imagens de impacto, plena de figuras de estilo e de retórica, nas quais nem a estranheza estava ausente, como na famosa “Apóstrofe Atrevida”, dirigida a Deus e sem papas na língua, que se vê no Sermão “Pelo bom sucesso das armas de Portugal contra as de Holanda”.
A vida do Pe. Antônio Vieira, que cobriu praticamente todo o século 17, foi intensamente vivida. Seja no Brasil, como pregador e missionário, seja na Europa, como pregador, diplomata, negociador da Corte portuguesa em temas que variavam de assuntos fiscais a peripécias militares, da recuperação econômica do Reino à criação de uma Companhia de Comércio do Brasil, à semelhança da Companhia holandesa das Índias Ocidentais. Processado e condenado pelo Santo Ofício, absolvido pelo Vaticano, mas sempre imbuído de um altivo sentido de justiça e independência de caráter – traços que o levaram por vezes, vale dizer, até a caminhos ínvios, eivados de misticismo e utopia e de difícil aceitação racional, como na controvertida tese da instauração do Quinto Império.
Esse foi o Pe. Vieira, cuja vida e obra podemos percorrer através deste texto claro e conciso de seu irmão de Ordem e grande admirador, Pe. José Carlos Aleixo. E se algo mais faltara para conferir a Vieira o título de arauto da lusofonia, bastaria lembrar que também a terras de África ele levou seu verbo incandescente , em 1652, mais precisamente, à pequena Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, situada em Ribeira Grande, atual Cidade Velha, na Ilha de Santiago, Arquipélago de Cabo Verde.