Portugal está a afastar-se dos tradicionais hábitos alimentares mediterrânicos. A realidade é que estamos a consumir mais calorias, mas de pior qualidade. Em tempos de inflação elevada, surge a questão: será que é preciso gastar mais para ter uma alimentação saudável?
Os portugueses têm menos dinheiro disponível para as despesas correntes e a queda orçamental começa a notar-se à mesa. A elevada taxa de inflação que atingiu Portugal em janeiro de 2023 (8,4%) está a deixar marcas significativas na economia portuguesa, o que afeta diretamente o poder de compra dos cidadãos. De acordo com dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), a média da remuneração mensal bruta, no último trimestre de 2022, foi de 1.575 euros, representando um aumento de 4,2% em relação ao período homólogo. No entanto, quando consideramos o impacto da inflação nos preços dos bens e serviços consumidos em Portugal, a média da remuneração bruta real caiu para 1.334 euros, no final de 2022 – o valor mais baixo desde 2018. Esta diminuição no poder de compra dos cidadãos é uma preocupação crescente, já que a inflação continua a corroer o valor dos salários e a dificultar a manutenção de um nível de vida adequado.
A fama de Portugal ser um dos povos que mais segue a dieta mediterrânica saudável começa a ficar comprometida. Como define a Ordem dos Nutricionistas, “a dieta mediterrânica é muito mais do que um regime alimentar: representa um estilo de vida e uma parte do património dos países da região mediterrânica”.
Desde 2013 que a dieta mediterrânica é reconhecida pela UNESCO como património cultural imaterial da humanidade. Na International Conference on Diets of Mediterranean, em 1993, foram estabelecidas as principais características deste padrão alimentar: um maior consumo de vegetais, sejam hortícolas, frutas, cereais integrais e os seus derivados, leguminosas, frutos secos, em comparação com os produtos de origem animal. O azeite é reconhecido como a principal fonte de gordura, enquanto a água é considerada a principal bebida. Há também um consumo baixo a moderado de lacticínios, uma preferência pelos produtos locais e sazonais e um consumo baixo a moderado de vinho, preferencialmente, durante as refeições. Como um típico português diria: “Numa mesa portuguesa, que nunca falte o pão, o azeite e o vinho (com moderação)”. A par disto, existe a Roda dos Alimentos que, segundo a Deco Proteste, “revela, de forma simplificada, como seguir uma alimentação saudável e equilibrada. Destaca a importância de cada grupo alimentar e o número de porções diárias”.
Será que uma alimentação saudável implica gastar mais dinheiro? Esta é uma questão que preocupa muitos portugueses e que merece ser respondida por quem sabe do assunto. Inês Panão, nutricionista, garante que “comer bem não tem necessariamente de ser mais caro”, embora admita que “as escolhas dos portugueses na hora de ir às compras, muitas vezes, não ajudem”. Os principais erros de comportamento no consumo alimentar que aponta são a falta de planeamento e de organização. “Acabam por comprar muitas coisas que não são precisas. Compram em excesso alguns alimentos, depois não os cozinham ou não os arranjam e congelam. Desperdiçam imensos alimentos e perdem dinheiro. Além disso, gastam muito tempo nas compras e, muitas vezes, não comparam os produtos de supermercado”, justifica.
“A vida está mais cara, isso é verdade, mas há formas de minimizar esse impacto”, afirma a nutricionista. Inês Panão refere o cuidado que é preciso ter na hora de selecionar a informação existente sobre a alimentação. A nutricionista adverte que “existe muito boa informação, mas também muitos mitos sobre o assunto”. Para combater este problema, sugere a leitura e pesquisa dentro do site da Direção-Geral da Saúde (DGS), bem como dos seus programas. “O Nutrimento, por exemplo, fornece informações sobre como ter uma alimentação saudável, tendo como base o padrão alimentar mediterrânico”, especifica.
Balança alarmante
A Balança Alimentar Portuguesa (BAP) que, de acordo com o INE, é “um instrumento analítico de natureza estatística baseado na oferta de alimentos no território nacional, numa perspetiva de consumo aparente, enquadrando as disponibilidades alimentares e a respetiva evolução em Portugal, em termos de produtos, nutrientes e calorias”, concluiu, no estudo compreendido entre 2016-2022, que os portugueses estão a consumir mais quilocalorias do que a média prevista. Segundo a DGS, um adulto saudável deve consumir, em média, entre 1800 e 2500 quilocalorias. A BAP registou um consumo médio diário de 4075 kcal.
De acordo com as recomendações da Roda dos Alimentos é aconselhável ingerir diariamente do grupo alimentar “carne, pescado e ovos”, uma quantidade correspondente a 5,0%. No entanto, os dados de 2020 revelam um consumo médio acima do recomendado, com valores próximos de 16,9%. No caso específico da carne, verificou-se uma média de 428,6 kcal – quatro vezes superior ao recomendado.
Outra situação preocupante acontece ao nível do uso de gorduras e óleos recomendados. A Roda dos Alimentos aconselha um consumo diário de 2,0%. Em 2020, em Portugal, fixou-se nos 5,1%. Em contrapartida, os portugueses têm consumido a nível das hortícolas e frutas valores inferiores ao esperado. A Roda dos Alimentos recomenda um consumo diário de cerca de 23% a nível das hortícolas e 20% a nível das frutas. No entanto, no mesmo ano e segundo o mesmo estudo, registou-se uma ingestão média diária de cerca de 14,4% de hortícolas e 15,3% de frutas.
Estes dados permitem perceber que, apesar do excelente padrão alimentar mediterrânico que caracteriza o país, tem-se verificado uma alteração dos hábitos alimentares portugueses. O distanciamento dos hábitos alimentares mediterrânicos tem sido cada vez mais comprovado. Segundo a DGS, “os hábitos alimentares inadequados são o fator de risco modificável que mais contribui para a mortalidade em Portugal”.
A importância da literacia alimentar
Telma Nogueira, nutricionista especialista em Nutrição Comunitária e Saúde Pública, garante que “para atingir uma boa alimentação, não é preciso gastar muito”. O principal problema destacado pela especialista é a falta de literacia sobre o tema da alimentação. Apesar dos apoios financeiros concedidos às famílias mais desfavorecidas, Telma Nogueira avisa que, mesmo com os cabazes da segurança social, se não houver um esforço para as capacitar relativamente à literacia alimentar, os apoios financeiros não vão ser aproveitados. “Por exemplo, o Banco Alimentar dá farinha e brócolos e depois as pessoas, porque não sabem o que fazer, acumulam brócolos e farinha. Portanto, é muito importante capacitar as famílias para conseguirem desenvolver a tal literacia alimentar, que inclui competências desde a escolha de alimentos, à confeção, à preparação e ao consumo”, aponta.
Apesar do alcance diminuto da literacia alimentar, a criação de documentos orientadores e de sites sobre esta tem vindo a aumentar. Nestes documentos, é possível encontrar receitas que utilizam os alimentos do cabaz com IVA zero, baseadas no princípio de uma alimentação saudável e que exigem pouco tempo de preparação: “É este tipo de capacitação com estratégias práticas que depois faz a diferença na tal concretização dessa alimentação saudável e sustentável, mesmo quando temos pouco tempo.”
Foi criado, também, um cabaz com 46 alimentos com o objetivo de, em conjunto com a medida do IVA zero, combater as consequências da inflação no rendimento das famílias e reduzir a taxa de inflação dos preços destes produtos até 0,2%. Esta estimativa de redução da inflação apresentada pelo foi comprovada pelo INE, no final de maio. A implementação do IVA zero fez com que a taxa de inflação homóloga (variação de preços relativamente ao mês anterior, neste caso, face a abril) descesse de 5,7% para 4%.
Sustentabilidade na alimentação
Para além da literacia alimentar, é também necessário pensar na sustentabilidade dos alimentos que consumimos. “Atualmente, está muito na moda os mercados e produtos biológicos, que são mais sustentáveis, mas, infelizmente, não são acessíveis a todos os portugueses”, afirma a nutricionista. A agricultura regenerativa é outro tipo de cultura agrícola sustentável, em que os nutrientes dos alimentos não são comprometidos e respeita o uso dos recursos do planeta. Telma Nogueira sublinha ainda que “a sustentabilidade na produção deve estar sempre na mente dos consumidores” e, por isso, recomenda “produtos locais e sazonais, que, para além da sua sustentabilidade, serão mais económicos”.
Por Alice Antunes e Joana Pinto Fernandes, alunas da licenciatura em Jornalismo da Escola Superior de Comunicação Social de Lisboa.