Com o “canudo” e o coração nas mãos
De acordo com um estudo elaborado pela Universidade de Évora, atualmente, 20% dos alunos do ensino superior sofrem com algum tipo de doença mental. Mais de metade dos estudantes do ensino superior confessa ter sentido impacto na saúde psicológica, após a Covid-19. E 28% revela ter necessidade de tomar medicação para combater a ansiedade, a depressão ou problemas de sono. Os especialistas consideram os dados muito preocupantes
Preparam as malas quando recebem a notícia que entraram no ensino superior, mas na mala não se encontra um manual de instruções para lidar com o desconhecido. O que se avizinha não é fácil: viver sob o efeito da “doença da incerteza”, a tão falada ansiedade. Esta é a realidade de muitos estudantes universitários portugueses. Segundo Maria Conceição Soares, psicóloga no Instituto Politécnico de Lisboa, “a ansiedade tem vindo a crescer porque o mundo está a ser percecionado como um lugar cada vez menos seguro e previsível. A ansiedade surge como um escudo para lidar com a incerteza que o futuro reserva”. A terapeuta classifica a ansiedade como “a doença da incerteza, ou seja, é uma resposta que o ser humano desenvolveu”.
Ainoa Dipac, 19 anos, é aluna de 1º ano em ensino pós-laboral da licenciatura em Relações Públicas e Comunicação Empresarial, na Escola Superior de Comunicação Social. O facto de iniciar as aulas ao final da tarde envolve um grau de esforço acrescido com o qual diz nem sempre ser fácil de lidar: “Como estudantes de pós-laboral, temos dias em que entramos às 18h30 e saímos às 23h30”, aponta a jovem. A carga horária e de trabalho foram os principais fatores mencionados por Ainoa para explicar os níveis de ansiedade que confessa sentir: “Não sou trabalhadora-estudante, mas conheço alguns colegas e já os vi extenuados, muitas vezes, só com 30 minutos para jantar.”
O ensino secundário, os amigos, a família, os hábitos que se haviam formado há anos, o conhecido, tudo é deixado para trás. “Onde há mais ansiedade é nos primeiros anos e no primeiro semestre”, identifica a psicóloga do Instituto Politécnico de Lisboa. Como esclarece: “Os novos alunos são obrigados a adaptar-se a uma nova fase da vida e à descontinuidade dos papéis que até agora haviam desempenhado. Quando a adaptação à vida universitária começa a ser um processo mais natural, é evidente que isso se estende a outras situações da vida da pessoa.”
A carga de trabalho exigida no ensino superior acaba por ser um dos maiores desafios para os estudantes no geral. “Não vivemos aqui para fazer o curso, temos uma vida e mais coisas para fazer. São essas mesmas coisas que nos ajudam a estar bem mentalmente para fazer o curso”, insinua Ainoa Dipac. Assim como Ainoa, Marcus Santiago, 23 anos, estudante-trabalhador e aluno de mestrado, na Faculdade de Ciências e Tecnologia, da Universidade Nova de Lisboa, acusa também o excesso de trabalho como um dos fatores prejudiciais para a saúde mental dos universitários, particularmente, como diz, “em épocas de avaliações, em que existe uma grande carga horária de trabalho, quer em testes, quer em trabalhos e projetos, sobretudo, se se tratar de estudantes trabalhadores. É um ciclo vicioso e uma bola de neve que depois pode levar a um estado de saúde mental menor”.
O estudo sobre a saúde mental dos estudantes do ensino superior, elaborado pela Universidade de Évora e pelo CHRC (Comprehensive Health Research Centre, no último trimestre de 2022, revela resultados preocupantes. Num universo de 3143 respostas de estudantes universitários, “61,9% apresenta sintomas depressivos, 23,4% dos quais são leves e 38,5% moderados a severos. Os problemas mais apontados foram o sentimento de cansaço ou ter pouca energia (42%) e alterações do sono (38%). Um em cada quatro (27,1%) dos inquiridos confessou ter pensamentos de que estaria melhor morto ou de se ferir a si mesmo de alguma forma. Na amostra, 27% afirmou que a sintomatologia depressiva causa muita ou extrema dificuldade na vida académica/trabalho, lida doméstica ou convivência com outras pessoas em 27% dos casos, o que significa que a situação afeta funcionalidade”.
Lara Guedes de Pinho, professora no departamento de Enfermagem, da Universidade de Évora, e coordenadora da investigação afirma que “o estudo foi realizado porque a entrada no ensino superior corresponde a uma transição complexa. Adicionalmente, estudos internacionais indicam que os jovens foram os que mais sofreram alterações na saúde mental no período pandémico, pelo que sentimos necessidade de realizar um diagnóstico de situação no ensino superior, para, posteriormente, desenvolvermos programas de promoção da saúde mental no ambiente académico”.
A viverem sob uma rotina de café, muitas horas ao computador e poucas horas dormidas, o corpo começa a dar sinais e a necessidade de uma ajuda especializada começa a ser fulcral na vida de muitos estudantes portugueses. “A maioria dos estudantes não procura ajuda pelo facto de o apoio profissional ser caro (58,5%) e devido ao longo tempo de espera para conseguir uma consulta (50,2%)”, revela Lara Guedes de Pinho.
A realidade pós-pandemia
Os resultados deste estudo confirmam a realidade que os profissionais de saúde mental têm encontrado no contacto com os pacientes mais jovens. A terapeuta no Instituto Politécnico de Lisboa confirma que, desde o início do ano letivo de 2022/2023, recebeu mais de 200 pedidos de consulta, mas que “como a prontidão de resposta nem sempre consegue ser muito rápida, é possível que houvesse mais pedidos se houvesse uma maior perceção de rapidez”. Ao lado desta espera interminável por uma consulta, encontra-se a vergonha de recorrer a estes métodos profissionais. O estudante Marcus Santiago defende, sem estigmas, que “procurar ajuda mental tem de deixar de ser estigma. Toda a gente devia experimentar”.
A maneira com que os jovens reagem às adversidades e tentam acalmar a ansiedade varia, naturalmente, em função da pessoa. Lara Lima, 21 anos, estudante natural de Lagos, do 2º ano da licenciatura de Audiovisual e Multimédia, na Escola Superior de Comunicação Social confessa que “às vezes, só falar com alguém faz toda a diferença”. A sociedade cada vez mais individualista e agarrada aos dispositivos eletrónicos também parece contribuir para o estado preocupante da saúde mental. “Muitas das vezes, não estamos atentos ao que se passa ao nosso redor e depois vemos casos e notícias de suicídios de jovens. Isto ocorre porque a própria família e os amigos desses jovens não estão atentos”, lamenta Marcus Santiago.
É em períodos de grande ansiedade e stresse académico que os níveis de serotonina dos estudantes passam a ser substituídos por níveis elevados de cortisol. O bom humor e a energia dão lugar à desmotivação, às dores de cabeça e à sensação de que todo o ar do planeta não chega para respirar. Encontrar soluções, profissionais e não profissionais, é importante para diminuir estes sintomas. A estudante Lara Lima comprova esta ideia: “Não frequento ajuda profissional, mas inscrevi-me no ginásio para ver se também distraio a cabeça. Também é bom distrairmo-nos com séries e estarmos com amigos, nem que seja um bocadinho.”
A especialista Lara Guedes de Pinto sublinha que é urgente desenvolver ações que possam inverter a situação negativa e ajudar os jovens a atingir o bem-estar: “Devemos fazer algo para promover a saúde mental dos estudantes e prevenir a doença muito mais do que atuar quando já existe a doença instalada. São precisos programas, a nível do ensino superior, organismos que ajudem de forma proativa, preventiva e programática, a fim de levar o estudante a criar mecanismos de entreajuda e autoajuda.” A psicoeducação é, acrescenta, “fulcral para, neste caso, o estudante se empoderar a si mesmo, mas também aprender a funcionar como um agente de ajuda para quem precise”.
A internet como uma ameaça à saúde mental
O estudo da Universidade de Évoca também indicia que a internet contribui para os distúrbios mentais identicados na pós-pandemia. Devido ao fácil acesso à informação, as redes sociais são um fator determinante no estado emocional não só dos mais jovens, mas de todos os seres humanos. “Estar muito ao telemóvel também leva a que surjam os problemas de saúde mental porque os jovens convivem menos do que anteriormente, de forma presencial, e mais através das redes sociais. Com a pandemia, isso agravou. Tiveram de ficar confinados em casa e a adição às redes sociais tornou-se ainda maior. Leva ao isolamento e ao agravamento da saúde mental”, refere a coordenadora da investigação.
O estudo realizado pela Universidade de Évora com o apoio CHRC revelou ainda que ser mulher, ter pior sucesso académico e encontrar-se num nível socioeconómico mais baixo são características propícias a um estado emocional mais depressivo e ansioso. Mas também ser estudante deslocado. “O facto de alguns estudantes estarem longe da família e não se encontrarem rodeados daquela rede de pessoas a que sempre estiveram habituados pode provocar uma alteração nos níveis de ansiedade e stresse”, explica Lara Guedes de Pinto. O estudo indica que os estudantes deslocados que regressam à sua terra natal aos fins de semana e visitam a família mais regularmente apresentam menos sintomas depressivos e ansiosos, assim como os que se encontram numa relação amorosa, realçando – refere a investigadora – “a importância de relações afetivas para a saúde mental”.
Agir contra o estigma de pedir ajuda, atuar para promover a saúde mental dos jovens e ajudá-los a lidar com os problemas mentais e psicológicos que os perturbam está escrito a cores encarnadas sobre fundo triangular amarelo. “É necessário contar com a participação dos jovens para percebermos qual é a sua opinião sobre este tema, ou seja, que necessidades sentem e que recursos é que necessitam nas universidades. É preciso estarmos atentos e não encarar esta ‘pandemia’ de forma leviana. Muitos deles têm até já a intenção de se ferir a si próprios e apresentam comportamentos autolesivos. É preciso atuar”, conclui Lara Guedes de Pinho.
Por Daniela Nunes e Maria Santiago, alunos da licenciatura em Jornalismo da Escola Superior de Comunicação Social de Lisboa.
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