Cerveja gelada no copo? Agradeça às mulheres
Em pleno século XXI ainda existem diversos estereótipos e preconceitos, relacionados com o sexo feminino, que vigoram. “O sexo fraco”, o “sexo pouco competitivo”, “o sexo menos inteligente” ou “o sexo menos rentável” são apenas alguns dos estigmas que continuam a dificultar a emancipação feminina em diversos contextos, principalmente no âmbito profissional. A verdade é que ainda vivemos numa sociedade preponderantemente machista, onde a misoginia persiste. Contudo, o conhecimento é sinónimo de poder e, por isso mesmo, este deve ser usado como arma. É fundamental que o reconhecimento e a atribuição de mérito sejam imparciais, em ambos os sexos. Deste modo, fazendo uso das palavras e da história, proponho-me a desvendar uma das grandes descobertas protagonizadas por mulheres: a cerveja. Sim, exatamente; a cerveja geladinha no copo só existe porque o sexo feminino assim o quis. Fica a ressalva que este artigo não pretende gerar uma “guerra entre os sexos”; pretendemos apenas divulgar a origem de uma das bebidas “mais famosas do mundo”. Para tornar a leitura mais confortável e a experiência mais realista, aconselhámo-lo a beber uma cerveja.
Não é surpreendente referir que a cerveja é das bebidas mais consumidas, em todo o mundo, pelos homens. Normalmente a publicidade e os spots comerciais que a promovem são supermachistas, insinuando que esta é o símbolo da masculinidade em versão líquida, exclusiva para este nicho de mercado. Contudo, segundo o estudo desenvolvido pela especialista em bebidas alcoólicas, Jane Peyton, as mulheres foram as responsáveis pelo desenvolvimento e aprimoramento da cerveja. Pelo menos até ao século XVI, foi consumida e produzida preponderantemente pelo sexo feminino.
Autora de quatro livros sobre cerveja (Beer o’ Clock; School of Booze; Drink: A Tipplers Miscellany e Brilliant Britain), Peyton decidiu analisar cerca de 10.000 anos de história. Segundo os dados apurados, a cerveja era vista como um alimento e não uma bebida. Uma vez que esta precisava de ser cozinhada e fervida e essas tarefas eram incumbidas ao sexo feminino, o seu sabor foi sendo construído pelas mulheres. A especialista em bebidas alcoólicas viajou até à antiga Mesopotâmia e até à Suméria – os primeiros locais onde a bebida começou a ser fabricada – para descobrir mais sobre o assunto. Nesta região, o armazenamento dos cereais selvagens em potes de água era uma tarefa habitual. O sexo feminino era o responsável por essa gestão e, uma vez que era o grande conhecedor das propriedades das plantas, começou a misturar outras substâncias. Primeiro o mel e depois as frutas. Fabricar um elixir com o máximo de sabor era a tarefa que se impunha. Com o passar do tempo, depois dos cereais fermentarem, as mulheres extraíam o sumo e bebiam-no, acreditando que aquela bebida era uma fonte de alimento poderosa. A deusa Ninkasi (ver imagem abaixo) – representada como mulher e que significava “a senhora que enche a boca” – ajuda a corroborar estes factos. Esta divindade era considerada, pelos sumérios, a responsável pela criação da cerveja, passando a ser o símbolo divino que personificava a descoberta da bebida pelo sexo feminino. O que inicialmente era visto como um afazer doméstico, rapidamente passou a ser uma especialidade muito apreciada, espalhando-se por todo o mundo.
Na antiguidade egípcia, a cerveja era considerada como uma dádiva de uma deusa e não de uma figura masculina. Aliás, esta era tão popular no Egito, que a realeza era enterrada com frascos de cerveja, para que pudesse ser sustentada na vida após a morte. Esta bebida era utilizada como um alimento medicinal e como forma de pagamento. Graças a estes fatores, passou a ser exportada para o mundo todo, ganhando cada vez mais popularidade e outras particularidades na receita.
Segundo o estudo de Peyton, também foram as mulheres as principais responsáveis pela invenção e comercialização da cerveja na Idade Média. Na época em que os homens vikings exploravam o continente europeu, precisando de se ausentarem por longos períodos de tempo, as mulheres ficavam em casa, a fabricarem a bebida e a comercializá-la para garantirem parte do sustento familiar. Deste modo, começaram a gerir as “tabernas” da época, ficando popularmente conhecidas por Alewifes (imagem abaixo).
A Inglaterra foi o principal palco que ajudou a popularizar a bebida, sendo bastante apreciada até aos dias de hoje. Aliás, algumas figuras da realeza, como foi o caso da rainha Elizabeth I, tinham o hábito de beber cerveja sempre que faziam uma refeição, incluindo ao pequeno-almoço. No entanto, apesar do apreço da soberana pela bebida e apesar de esta ser vista como património cultural do sexo feminino, estima-se que a partir do século XVI o desenvolvimento e a fabricação da cerveja por mulheres começaram a ser condenados – principalmente pelas figuras do sexo masculino que não queriam que estas ganhassem independência económica.
Os movimentos considerados “hereges” – pela Inquisição e pelo Estado – começaram a ser ferozmente perseguidos, no final da Idade Média, e as figuras femininas foram as que mais sofreram com isso. O período conhecido popularmente como o da “Caça às Bruxas” serviu de pretexto para retirar a fabricação desta bebida às mulheres. Confuso? Nós explicamos. Segundo a pesquisa de Jane Peyton, a cerveja era produzida num grande caldeirão. Quando a bebida começava a fermentar, o líquido borbulhava e para que este pudesse ser mexido, era necessário a ajuda de um pedaço grande de madeira. Além disso, à porta das tabernas que vendiam cervejas, colocava-se uma vassoura para assinalar o local; como se fosse uma placa de sinalização. Uma vez que a cerveja é feita à base de malte (mistura de cereais), era normal que os ratos começassem a infestar os locais onde se confecionava a bebida, com o intuito de se alimentarem. A aquisição de um gato para solucionar a questão era fundamental. Vamos a contas: mulheres, caldeirão, líquido que borbulha, paus de madeira, vassouras e gatos; temos todos os elementos que ajudam a construir a imagem popular de uma bruxa. Resultado: muitas das mulheres que foram acusadas de bruxaria, acabando mortas em milhares de fogueiras, eram, na verdade, fabricantes de cerveja.
Toda esta onda de perseguições não tinha um verdadeiro propósito religioso. O que a Inquisição pretendia era garantir o controlo do poder e, para isso, precisava de o retirar ao sexo feminino. Uma vez que a bebida já era muito popular e apreciada, na época, a Igreja não quis proibi-la. As mulheres foram o bode expiatório e a bebida passou a ser fabricada pelos homens, até meados do século XVIII. Depois disso, com a Revolução Industrial, vieram as novas tecnologias e os inéditos métodos de fabricação. As mulheres deixaram de conseguir trabalhar fora de casa e – progressivamente – foram sendo segregadas do contexto profissional. Todo o universo da produção de cerveja passou a ser dominado pelo sexo masculino.
O que importa reter? O ADN da cerveja é feminino. O preconceito e o sexismo precisam de perder terreno na sociedade contemporânea. A pesquisa desenvolvida por Peyton – uma das mais prestigiadas historiadoras de cerveja do mundo – ganha especial importância na atualidade. Os estereótipos são criados na mais pura e literal ignorância. A ausência de conhecimento é utilizada como uma arma por aqueles que, através da apropriação do poder, enriquecem com base na segregação alheia; neste caso, com base na segregação de género. Se aceitou o nosso conselho e acompanhou esta história, enquanto se refrescava com uma cerveja, lembre-se: esta bebida só existe porque as mulheres a inventaram, desenvolveram e popularizaram-na. Agradeça e brinde a elas.
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