A mesma língua, caminhos diferentes
Lusofonia. Um mundo de culturas, sotaques, dialetos e diferenças unidas pelo pequeno fio da língua cruza-se nas salas e nos corredores das instituições de ensino superior portuguesas com ofertas formativas na área das Ciências da Comunicação. Quando terminam os cursos e começam a exercer a sua profissão, os recém-formados tornam-se uma espécie de embaixadores desta miscelânea de identidades que é o universo CPLP
Do jornalismo à publicidade ou entretenimento, a experiência dos jovens comunicadores cuja formação teve como palco comum Portugal é, no entanto, diferente. Se para uns resultou numa oportunidade, outros foram barrados pelo muro que é a exclusão. Neusa Sousa, N’Zinga Pires, Luzineide Pacheco, Cláudio França e Raquel Pacheco contam as suas histórias e as razões que os levaram a enveredar pelo caminho da comunicação. A inclusão é o primeiro passo para a integração de quem vem de fora, mas, muitas vezes, torna-se num entrave quando o sotaque e os hábitos culturais se sobrepõem ao senso comunitário da lusofonia.
A fuga ao patriarcado
Neusa Sousa é o rosto feliz que abre o programa “Bem-Vindos”, da RTP África. A história por detrás da sua expressão não assume tanta felicidade. Neusa veio para Portugal com dez anos e, desde essa altura, o seu percurso não foi fácil. De São Tomé e Príncipe trouxe a língua, mas também o sotaque, a cultura e uma história diferente daquelas a que estamos habituados. De África à Margem Sul, da Margem Sul à Amadora e da Amadora a Viseu, a mudança marcou constantemente a vida da jovem africana. Confessa ter sido difícil ultrapassar a barreira de preconceito, que considera ser intrínseca ao ensino superior e até ao mercado de trabalho em Portugal: “Eu tinha um sotaque, uma forma de estar e de me comportar diferente. As pessoas gozavam comigo por isso.”
Hoje, com 30 anos, Neusa lembra as dificuldades que sentiu ao contactar pela primeira vez com a comunidade africana da Amadora, em Casal de São Brás. O ambiente que aí se fazia sentir era muito distante da realidade africana, já que a maior parte das pessoas que lá vive não nasceu em países africanos, mas é afrodescendente. Criou-se, desde logo, um bloqueio direto entre as diferentes experiências e contactos com a cultura de origem, que acompanhou o crescimento da jovem. A comunicadora viveu desde os 11 anos dentro da comunidade cabo-verdiana, num registo social que considera ter abalado a sua identidade.
As mudanças mantiveram-se presentes na vida de Neusa Sousa. Em 2012, ingressou na Escola Superior de Tecnologia e Gestão, o que implicou que fosse viver para Viseu, uma cidade que não se destaca pela diversidade, como conta: “Na faculdade toda, éramos apenas 15 pretos de várias nacionalidades e eu era a única são-tomense. Tive de me tentar integrar e não consegui.”
Neusa Sousa mostra-se grata pelas portas que a formação lhe abriu, mas não esconde a insatisfação com a falta de pluralidade no ensino superior português. Oito anos se passaram desde que concluiu a licenciatura em Turismo e, aos olhos da atual jornalista, a situação não mudou. “O ensino superior não está preparado para a diversidade e o preconceito está vincado no currículo escolar: A academia não é para pessoas negras ou com outras origens”, confidencia. Até mesmo os mais responsáveis e acreditados quebram a barreira da moralidade quando se trata de situações de falta de conhecimento linguístico, gramatical e até mesmo tecnológico. Muitas vezes, os próprios professores protagonizam circunstâncias de discriminação – experiência com a qual Neusa se deparou durante o seu percurso escolar.
Num tom mais pessoal, a jovem jornalista acrescenta que o curto período de tempo que passou na sua terra natal, São Tomé e Príncipe, depois de terminar a licenciatura, deixou claro que não faria sentido voltar definitivamente. Num país onde os homens dominam o espaço social e deixam a mulher para segundo plano, Neusa, enquanto ativista pelos direitos das mulheres, viu o seu espírito condicionado: “São Tomé tem uma grande comunidade machista e patriarcal.” Portugal é a via mais segura, ainda que implique muitos desafios do foro individual e profissional.
A cor de pele da apresentadora foi uma condicionante para poder estar na televisão, tal como o sotaque, o que, ainda assim, não a impediu de ser uma das caras da RTP África. “Aqui, não temos oportunidades. O único canal que nos abraça é a RTP África e, mesmo nesse caso, quem está na direção não são negros, nem africanos. São portugueses”, expõe. Neusa Sousa admite que um dos fatores mais desconcertantes foi o facto de o canal contrariar os seus próprios princípios: “O mote do programa é ‘De africanos para africanos’ e, mesmo assim, tive uma equipa 100% branca.”
Enquanto a possibilidade de ingressar em órgãos de comunicação é posta de parte, a única alternativa para os jovens africanos acaba por ser a criação dos seus próprios meios. Apesar de ter vingado na televisão, a são-tomense fundou o evento Chá de Beleza Afro, que pretende dar voz a mulheres africanas e afrodescendentes no espaço público. “O meu propósito é empoderar as mulheres negras porque vivenciei a marginalização que elas sofrem”, conta. Quando questionada sobre o porquê de não contratar pessoas brancas para a sua equipa, responde que essas pessoas já têm as devidas oportunidades: “É preciso pensar em quem não as tem.”
A miséria de uns é a mina de ouro de outros
O canto mais ocidental da Europa é para muitos um refúgio, um escape à miséria e falta de oportunidades, mas há quem não o veja como uma opção permanente. Luzineide Pacheco é uma jovem angolana e um exemplo da dificuldade que os jovens da lusofonia têm para se destacar no mercado da comunicação português. Hoje, vive em Angola e trabalha na área de Comunicação e Marketing, na empresa de organização de eventos LS e Republicano. Simultaneamente, é locutora do programa “Républica FM” da Rádio Escola.
Foi aos 17 anos que Luzineide chegou a Portugal, uma aventura que caracteriza como um “choque cultural”, em muito devido ao método de ensino que experienciou no curso de Ciências da Comunicação, na Universidade Autónoma de Lisboa. Ao estudar a história portuguesa, conta que lhe foi ensinada uma versão do colonialismo com a qual nunca tinha contactado: “A vossa História fala dos benefícios da colonização portuguesa de Angola, mas a História em Angola explora as infelicidades que a colonização trouxe. Não a vê como um benefício.”
A cultura angolana, que sempre esteve presente na sua vida, foi uma barreira à integração no ambiente social português: “Os angolanos gostam muito do toque e eu não via isso em Portugal.” Também o sotaque característico de Angola, bem como as gírias e os calões próprios, que lhe eram tão naturais, deixaram desde logo claras as mais marcadas diferenças entre os dois países. As tentativas de forçar um sotaque português separavam-na dos outros colegas guineenses e cabo-verdianos, que assumiam a sua pronúncia.
Desde que veio para Portugal, a jovem sempre teve consciência de que iria regressar à terra de origem. A radialista confessa ter ingressado no curso com a finalidade de adquirir uma melhor perspetiva educacional, que a pudesse lançar no mercado de trabalho angolano: “Quando voltei para Angola, as pessoas valorizaram mais o meu trabalho porque estudei fora.”
A incerteza da empregabilidade em Angola é ainda mais visível do que em Portugal, mas Luzineide Pacheco considera-se sortuda pelas oportunidades de trabalho que recebeu assim que voltou: “Gosto muito do meu país e, apesar de faltar muita coisa, é uma terra de oportunidades.” O patriotismo, que nunca abandonou a publicitária, dita agora que permaneça no território de que é natural para que possa desenvolver projetos.
Luzineide Pacheco considera que, nos dias de hoje, “Angola é uma mina de ouro para os estrangeiros; uma terra de oportunidades explorada por quem vem de fora”.
Países irmãos, educações diferentes
Do maior país da lusofonia também partem jovens à procura de melhorar as aptidões comunicativas na panóplia de cursos que o ensino superior português tem para oferecer. Passaram 23 anos desde que Raquel Pacheco chegou a Portugal e, desde então, a sua relação com a área da comunicação e, especificamente, com o ensino da comunicação em Portugal, prendeu-a ao país. Com uma bebé de dez meses ao colo, a agora professora chegou motivada por um convite de emprego que o seu ex-marido recebeu. Antes de pensar em tirar qualquer tipo de curso e tendo em conta que já era licenciada em Cinema na altura, a comunicadora lidou desde cedo com as diferenças culturais entre os dois países: “Achei que Portugal tinha uma estrutura muito machista. Por exemplo, quando fui comprar a minha casa, o construtor só olhava para o meu marido e não falava comigo.” Sair da realidade cosmopolita “carioca”, do Rio de Janeiro e deparar-se com um país que parecia ter “parado no tempo” foi o maior desafio que enfrentou.
Em 2008, ingressou no mestrado em Ciências da Comunicação, especialidade de Estudos dos Média e Jornalismo, na Universidade Nova de Lisboa, e conta ter encontrado um ambiente académico fechado: “Senti que a faculdade era morta. Entrávamos para a aula e depois íamos embora. Os professores eram muito teóricos.”
A licenciatura em Ciências da Comunicação – Cinema e Audiovisual, que tinha concluído em 2000, na Universidade Federal Fluminense, ficou marcada pela relação próxima com os professores e um ambiente essencialmente aberto à integração de quem vem de fora. Em Portugal, a realidade foi um tanto diferente. Ainda que tivesse noção da partilha entre valores portugueses e brasileiros, foi tudo uma questão de adaptação cultural: “As pessoas também têm de se adaptar à cultura do local. Eu tinha a noção de que o ambiente seria diferente e de que não haveria aquele fervor do Rio de Janeiro.”
A docente considera que “a postura dos portugueses perante a comunidade da lusofonia deixa muito a desejar. E acusa: “Portugal é um país conservador que finge que é tradicional. Existe um braço de ferro para com os imigrantes da lusofonia.”
Depois de anos a dar aulas no ensino superior português, Raquel Pacheco continua a vir com regularidade a Portugal, mas decidiu dar uma possibilidade ao ensino brasileiro, pelo que é temporariamente professora na Universidade de Brasília.
“Limites, stresse, pressão e medo são as características que definem o ensino português” na perspetiva da licenciada em Cinema, que teve a oportunidade de conhecer dois mundos diferentes dentro da escolaridade – o brasileiro e o português. Raquel diz que a liberdade que lhe foi dada no Brasil, bem como o à-vontade que sentiu, em nada se compara à limitação de metodologias que lhe foram impostas em Portugal: “Desenvolveu-se, desde o tempo do salazarismo, a cultura do medo. Esta cultura é uma tristeza e uma forma de dominação. Aqui, no Brasil, nós não temos esse medo.”
Ao contrário do que se verifica nos Países Africanos de Língua Portuguesa, o Brasil oferece cada vez mais oportunidades aos jovens para vingarem na área da comunicação. Raquel Pacheco conta que muitos dos seus alunos que chegam a estagiar são remunerados com o equivalente ao salário mínimo português. “O mercado brasileiro da comunicação está mais desenvolvido e procura cada vez mais jovens com competências sofisticadas e que acompanhem os avanços tecnológicos, o que ainda não é uma realidade tão presente em Portugal. Existem mais oportunidades para os alunos no Brasil do que em Portugal.”
O amor por Portugal não faz com que Raquel Pacheco esqueça as dificuldades por que passou para chegar a professora nem as suas dúvidas quanto ao futuro da área da comunicação: “É medo, falta de oportunidades, falta de investimento. É a filosofia do terror. Os estrangeiros ricos têm direito a tudo, enquanto os estudantes sofrem muito.”
A raridade de ser bem aceite
Portugal foi o passaporte para a excelência profissional de muitos jovens que fugiram a realidades menos desenvolvidas do ponto de vista educacional e, mesmo assim, nem todas as vezes a mudança foi sinónimo de preconceito. Enquanto uns não têm medo de partilhar histórias acerca da exclusão por que passaram, outros devem todos os seus agradecimentos à comunidade que os acolheu. N’Zinga Pires nasceu em Angola e é agora licenciada em Relações Públicas e Comunicação Empresarial, pela Escola Superior de Comunicação Social de Lisboa. A angolana é exemplo da inclusividade e abertura do ensino superior português, já que não aponta quaisquer dificuldades durante o seu processo de adaptação: “Sobre a integração em Portugal não tenho razões de queixa.”
A aventura da angolana em Portugal começou aos nove anos, quando o pai recebeu uma proposta de emprego irrecusável e a trouxe consigo para o país lusófono. Pouco mais de quatro décadas se passaram e ainda é díficil para N’Zinga Pires apontar uma situação de preconceito que tenha vivido: “Se realmente passei por isso, não me lembro.” A jovem realça, no entanto, a pouca diversidade que verificou ao longo do percurso educativo em Portugal: “No liceu, fui sempre a única negra na turma.” Mas a falta de colegas com a mesma origem nunca foi um problema, mas um desafio pessoal: “Não vai ser uma opinião sobre a minha origem que vai ditar o facto de eu seguir ou não uma vida profissional de renome ou fazer com que eu deixe de investir na minha educação.”
Depois de terminar o curso, N’Zinga Pires passou pelo mesmo impasse por que enfrentam tantos outros jovens recém-licenciados em Comunicação. As oportunidades de emprego escasseavam e não entrou imediatamente no mercado de trabalho. Apesar disso, nunca desanimou e, anos mais tarde, encontrou uma oportunidade: “Foi só quando entrei na área da diplomacia que comecei a sentir que estava a colocar em prática muitas das bases que me foram dadas durante a licenciatura.”
Alguns anos depois, N’Zinga Pires recebeu uma proposta de trabalho em Angola e diz não ter sido preciso pensar duas vezes sobre a decisão. Aceitou, pois ansiava regressar a casa. Atualmente, trabalha como coordenadora de eventos profissionais e culturais na Petrolífera Total. A gestora de eventos admite que foi a presença da família no seu país que motivou, em grande parte, a decisão de voltar: “Na verdade, a família é um passaporte. Precisamos do apoio deles.”
Do inesperado nasce o sucesso
Um jornalista não deve ser notícia, mas Cláudio França merece ser uma exceção à regra. O jovem que toma conta do espaço noticioso matutino da SIC Notícias é descendente de uma família angolana, que sempre o acompanhou e apoiou incondicionalmente. Cláudio França nasceu e cresceu nas Caldas da Rainha, mas as raízes angolanas sempre estiveram presentes ao longo da sua vida. Ao falar das origens, o jornalista lembra com nostalgia e saudade a gastronomia da terra dos pais: “Todos os fins de semana, a família reunia-se e cozinhávamos pratos típicos angolanos.”
Fazer as malas e viajar até outro país não é fácil para ninguém, mas Cláudio França olha para trás com admiração pelo que os pais conseguiram fazer por ele. No sistema de ensino português, teve oportunidades que, segundo o jovem jornalista, nunca viria a receber se tivesse crescido em Angola: “O ensino público angolano não tem capacidades.”
O pivô da SIC Notícias estudou Comunicação e Media, na Escola Superior de Educação e Ciências Sociais (ESECS), do Instituto Politécnico de Leiria, uma instituição que diz ter contribuído bastante para o seu percurso profissional: “O Politécnico deu-me muitas ferramentas práticas e o facto de ter professores muito jovens e próximos dos alunos facilitou bastante.” Cláudio França lembra de forma feliz o tempo que passou em Leiria e as experiências que leva da licenciatura. Quanto à inclusividade do ambiente na instituição, classifica-a com nota positiva: “Sempre senti o ambiente do Politécnico muito diversificado em termos de etnia e também muito inclusivo.”
A área da comunicação desde logo despertou o interesse de Cláudio França, mas até assentar as ideias na vertente do jornalismo ainda percorreu um caminho inesperado. “Na altura, não pensava no jornalismo como o futuro”, confessa o atual pivô.
Se é verdade que a vida dá voltas, o pivô da SIC mostra-se disposto a dar mais algumas. “Já considerei, muitas vezes, a possibilidade de ir para Angola definitivamente”, assume. O jornalista confessa que o único fator que o leva a ponderar esta hipótese se resume a uma palavra: família. Agora que vê a linhagem familiar a aumentar, questiona-se sobre um possível regresso ao país que tanto ama: “Tenho sobrinhos e gostava de acompanhar o seu crescimento de uma maneira que não envolvesse apenas videochamadas e fotografias.” No entanto, não há bela sem senão. Cláudio França olha para a situação do jornalismo em Angola e mostra-se consciente de que tal mudança significaria dar um passo atrás na sua carreira jornalística: “Ir para Angola agora ou num futuro próximo poderia ter uma influência negativa na minha carreira profissional.”
Por Luana Plácido e Sofia Bayó, alunas da licenciatura em Jornalismo da Escola Superior de Comunicação Social de Lisboa.
Sem comentários
This site is protected by reCAPTCHA and the Google Privacy Policy and Terms of Service apply.